Terça-feira, Março 19, 2024
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Contexto de pedofilia em ‘Sparta’ incendeia San Sebastian

O título acima reproduzido seria porventura adequado a suscitar a curiosidade dos leitores à procura da polémica de Sparta, o filme assinado pelo austríaco Ulrich Seidl, apresentado a concurso em San Sebastian, embora já envolto num manto de escândalo. Sobretudo depois da sua programada exibição ter sido vetada do festival de Toronto. Na verdade, Sparta, a segunda parte do projecto iniciado pelo austríaco Ulrich Seidl – o primeiro foi Rimini, exibido no festival de Berlim, em fevereiro passado -, parece ter todos os ingredientes para alimentar o sensacionalismo mediático. Aliás, o tema tem sido amplamente explorado, sobretudo depois das alegações do periódico alemão Der Spiegel de que os menores romenos que participaram no filme não estariam (ou os seus pais) a par das eventuais alegações de pedofilia que o filme poderia conter.

(Veja clips de Sparta no site oficial SSIFF).

O próprio Ulrich Seidl acabou por emitir um comunicado, via tweeter, justificando a razão pela qual cancelava a sua deslocação de promoção em San Sebastian: “apercebi-me que a minha presença poderia ensombrar a recepção do filme. Agora chegou o momento do filme falar por si próprio”. Falemos então do filme.

Talvez o mais prudente, e talvez até, mais honesto, seria enquadrar Sparta dentro dos demónios interiores que atormentam Ewald (Georg Friedrich), o homem de meia idade (e irmão de Johnny Bravo, interpretado por Michael Thomas, em Rimini). Ou os demónios do pai de ambos, Ekkehart (Hans-Michael Rehberg, a quem Seidl dedica o filme, o seu derradeiro trabalho antes de falecer em 1917) remetido a um lar de idosos e que vemos no início de cada filme receber a visita de cada um dos filhos. Ele que vive remetido cada vez mais ao seu passado, ambientado por músicas nacionais-socialistas e de exaltação ao Fuhrer, bem como pela falta da sua mãe. Aliás, é o passado que parece unir todas estas personagens.

Naturalmente, não há heróis nos filmes de Seild. Seja em documentário ou ficção, o austríaco nascido em 1952, procura auscultar os lados mais ocultos da alma humana. Foi assim em Rimini, mas também em Import/Export (2007), mesmo na trilogia intitulada Paraíso: Amor, Fé, Esperança (2012-2013), Na Cave (2014), etc.

Enquanto que no filme anterior, o filho Richie Bravo recebia dinheiro de mulheres mais velhas em troca de alguma intimidade, o seu irmão mais novo, Ewald, procura agora a proximidade de garotos, talvez o único impulso que acorde o desejo sexual afundado. Talvez por isso abandona a mulher, ainda desejável, e parte pela Roménia adaptando a velha escola de uma pequena localidade, onde promete dar aulas de judo gratuitas aos garotos locais. Chama-lhe Sparta e será encarada como um pequeno forte mítico e onde cada um dos garotos receberá o nome de um deus. Sendo ‘Fides’ aquele a que demonstra mais afecto.

É claro que Seidl não é inocente e mostra mesmo Ewald em cenas de alguma proximidade – mesmo sem nunca ultrapassar o limite que o separa da pedofilia – com os miúdos e que podem até ser reprovadas pelos todos os códigos actuais de vigilância juvenil. Mesmo quando, ainda que se forma indirecta, Seidl parece convidar-nos a avaliar (ou comparar) outros comportamentos menos correctos igualmente testemunhados no filme. Apesar de socialmente aceites de acordo com o cânone, poderão, eventualmente, suscitar algumas interrogações bem mais explícitas. Em particular, a rudeza extrema do pai de ‘Fides’ quando força o filho de 9-10 anos a beber do seu cálice de licor, ou quando força um dos filhos a matar um coelho; ou até a cena em que os pais dessas crianças, organizados como uma seita, forçam a entrada em Sparta, destruindo tudo e forçando Ewald a fugir. Talvez a ideia de Seidl seja então a de ajustar o cânone à nossa percepção. Não para justificar, como nunca o foi, mas para nos deixar com esse juízo.

Mesmo que Sparta não seja um filme tão conseguido como Rimini, será injusto ignorar a potência deste registo directo (seguramente arriscado!) e extremamente contundente sobre as tais zonas negras da alma humana. Isso, sim, será um “filme a falar por si”.

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