Terça-feira, Março 19, 2024
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Memoria e os encontros imediatos de Tilda Swinton

Foi o primeiro filme que vimos em 2022. Uma escolha mais ou menos óbvia dado o convite contido no mais recente trabalho do tailandês Apichatpong Veerasethakul, embora aqui num projecto integralmente filmado na Colômbia, com a particularidade de se rever nos mistérios do passado. O que significa também auscultar novos caminhos de fazer e sentir o cinema. O que não é pouco. Memoria foi um dos nossos filmes de 2021, visto em Julho passado, durante o festival de Cannes, onde venceria o Prémio do Júri. Agora, revisto com recurso ao screener promocional, enviado pela Neon, para a temporada dos prémios do cinema, em particular dos Óscares, onde, pelo menos para já, ficou arredado da lista de 15 eleitos (sendo os últimos cinco anunciados a oito de Fevereiro).

Já conhecemos a posição de Veerasethakul em relação às imagens, bem como à memória, aceitando que o seu cinema nos atravesse, ou inunde, com um irresistível feixe sensorial. Tal como, neste filme, a demanda de Jessica (Tilda Swinton, que vive mais o seu papel do que o interpreta) intrigada pela percepção de um ruído inquietante. Algo que descreve como o cair de uma bola de betão, embora com um contorno telúrico. É essa investigação (quase em forma de thriller) que Apichatpong acompanha em largas sequências captadas em diversos locais da Colômbia (de resto, a nacionalidade que representa o filme e a sua candidatura aos Óscar Internacional).

É então o encontro e o apurar desse ruído que leva Jessica ao encontro com um sonoplasta na universidade Nacional, embora também ao testemunho do esqueleto de uma rapariga com mais de 6 mil anos, com a particularidade de possuir um bocado no crânio, com a explicação “para tirar maus espíritos”. Há ainda outras descobertas arqueológicas, como a referência a materiais higroscópios (que absorvem a humidade do ar – ou a memória?) e até receitas de Xanax para forçar o sonho, esse espaço que, no cinema de Apichatpong, se confunde com a realidade. Tal como essa dimensão arqueológica esbatida na memória ancestral.

Assim chegamos à sequência central (e mais longa) do filme, com o encontro com Hernan, o homem que nunca abandonou o local onde vive. E que escuta as vibrações do passado, como as que repousam numa pedra e lhe dão conta da memória de tempos idos. Quem sabe, talvez uma faculdade aguçada pelo facto do pai dele ter gerido uma sala de cinema e do seu irmão ter sido detective. Até que, às tantas, Hernan questiona Jessica, “estás a ler a minha memória”, acrescentando “sou como um disco duro. E tu, de certa maneira, és uma antena”.

De facto, Jessica/Tilda é mesmo uma ‘antena’. No sentido que esta personagem capta as energias das pessoas com quem se atravessa, tal como esta actriz possui a capacidade de nos transmitir criatura de todos os tempos e de nenhum, ou de oferecer uma performance capaz de segurar cada plano num crescendo de significado. Até aqueles que estão ‘fora deste tempo’. Ora, não é essa a investigação (‘arqueológica, ou não) que Joe explora no cinema? Não é isso que o seu cinema nos exalta como poucos? Talvez por nos garantir um futuro das imagens que podíamos já não acreditar.

Mesmo inscrevendo-se na linha do seu cinema de exploração, Memoria aproxima-se ainda mais daquilo que Joe Apichatpong considera ser o futuro do cinema. Algures entre o sonho encarado como forma de realidade, seja ela virtual ou uma ‘magia negra’, de certa forma com a coerência que o cineasta e video artist nos confessou numa conversa, em Lisboa, em 2016, durante um seminário promovido pela universidade Nova (aceda aqui à entrevista intitulada ‘a definição do cinema está a mudar’). Apetece destacar, em particular, uma passagem relevante que se torna bastante para este filme: “Para mim, a memória é uma espécie de tesouro que procuro trazer para o cinema”. Ou ainda quando refere: “Eu sonho que poderemos ligar-nos, que a nossa mente pode ligar-se de forma a poder partilhar imagens. Neste caso não precisamos de um projector. Necessitamos apenas da nossa mente”. Sim, o tal cinema sensorial, ou e meditação da memória, que Apichatpong acredita virá a acontecer. Memoria é um passo muito firme nessa direção.

 

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