Quinta-feira, Março 28, 2024
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Apichatpong Weerasethakul: “A definição de cinema está a mudar”

Joe, como prefere ser chamado, esteve em Portugal para a dar um seminário para um doutoramento em Estudos Artísticos na Universidade Nova, para além da apresentação de sessões especiais na Cinemateca.

Foi precisamente na Cinemateca onde nos encontrámos para uma conversa bem mais reveladora do que o esperado. Uma conversa sobre o presente, o seu filme, a sua presença em Portugal, mas que acabou por abrir as portas do futuro, da sua concepção do futuro do cinema.

O que nos leva ao espectáculo de imagens e som que prepara para Bruxelas, em Maio. E é na sua forma absolutamente aberta de encarar o cinema, como um corpo orgânico que se liga mais connosco do que pensamos, que entrámos numa zona de fascinante descoberta.

Pelo menos para nós. Por isso, é uma entrevista que vale a pena ser lida até ao fim.

Bom dia, Sr. Apichatpong ou devo chamar-lhe simplesmente Joe?

Sim, Joe, está óptimo.

Quando surgiu de forma mais insistente, sobretudo depois do prémio em, Cannes, percebeu-se um esforço para tentar dominar do seu nome…

Mas acho que agora está a melhorar (risos)…

(risos) Sim, muito melhor. Gostaria de começar por lhe perguntar pelo seu trabalho aqui em Lisboa…

Com os estudantes? Sim, mas eu gosto mais de lhe chamar participantes, pois são já muito avançados. Mas está a correr muito bem. Até porque não estou habituado a dar aulas, apenas faço seminários e conferências.

É a primeira vez que o faz?

Sim. Já fiz workshops, mas esta é a vez em que estou a dar aulas durante vários dias a um grupo de alunos. Por isso, para mim, é mais uma forma de me descobrir a mim próprio, bem como planificar este curso e perceber como eu próprio trabalho. Como ouço interiormente e exteriormente com o próprio meio. Para mim, é uma espécie de revelação.

Portanto, também para si um processo de aprendizagem…

Sim, sim. Porque eu nunca discuto sobre a forma como faço os meus filmes. Foi, portanto, uma boa oportunidade.

Já que falamos nisto, e porque está aqui em Portugal, queria perguntar-lhe de que forma está ou não familiarizado com o cinema português…

Oh, devo dizer que sou muito mau… (risos) Apenas conheço o Oliveira, claro. O José Manel Costa, da Cinemateca recomendou-me que descobrisse o António Reis enquanto estivesse cá.

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Claro! Mas sei também que o seu anterior director de fotografia trabalhou com o Miguel Gomes, em As Mil e Uma Noites. Ainda trabalha com ele (Sayombhu Mukdeeprom)?

Ele está agora na Europa. Mas como cada filme tem um longo processo de gestação, não sei quando voltarei a trabalhar com ele.

Entremos então no seu trabalho: será que podemos distinguir o seu trabalho de curtas, em que é mais um video artist, daquele em que concebe as suas longas-metragens? É que são caminhos paralelos, ainda que de certa forma diversos na sua estrutura… Como relacionaria esse processo criativo?

Por vezes são caminhos diversos, outras vezes não. Por vezes, a regra do cinema é muito restritiva, em termos de imaginação, de enquadramento, algo que pode ser eliminado numa instalação. Mas eu sinto alguma pressão em explorar linguagens diferentes, combinações diferentes, outros vocabulários. Os públicos também são diferentes, a actividade é também diferente. Claro que são diferentes, mas por vezes acabam por se tocar.

De resto, começou por usar mais o vídeo, se não estou enganado…

Sim, comecei mais a fazer cinema experimental. Muito influenciado pelo cinema dos anos 50 e 60 e progressivamente fazendo trabalho vídeo, paralelamente em longas metragens. Muitas pessoas nem sabem que eu faço longas ou sabem apenas mais recentemente.

Mas deixe-me lá fazer esta pergunta um pouco retórica, mas que não deixa de ser pertinente: porque o faz, porque filma? No fundo, porque faz cinema?

Para me compreender a mim próprio. Pode parecer pretensioso, mas é verdade. Questiono-me sempre pela forma como faço certas coisas, crio uma certa luz. Ainda o faço. É algo muito estranho e complexo; é uma espécie de magia negra.

Um exorcismo?

Sim, uma luz que é imprevisível, e com uma relação tão emocional com a imagem. Podemos controlar o cinema, mas não é apenas sobre um guião.

Lembra-se de quando começou a pensar em fazer cinema?

Sim, era muito jovem. Lembro-me apenas de brincar com amigos e usarmos uma lanterna como se fosse uma câmara. Algo que sucede com muitas pessoas, no fundo um fascínio sobre a história e sobre a luz. Talvez porque na minha aldeia não houvesse muito para fazer. Nesse sentido, o cinema local foi muito importante, muito importante. Fui muito influenciado pelos filmes que vi aí, muito de ficção científica. Por Steven Spielberg.

Os seus filmes, de alguma forma lidam com uma certa mitologia, com todo esse lado da memória…

Isso é muito importante para mim. Para mim, a memória é uma espécie de tesouro que eu procuro trazer para o cinema. E é algo que não é fixo, está sempre a transformar-se. Mas o cinema é fixo. É um dilema com o qual procuro lidar. O dia a dia, os amigos, os amantes, a política. É quase como um diário de vida.

São frequentes os elementos nos seus filmes que regressam e se incorporam em outros de forma quase orgânica. Concorda?

Por vezes, de forma consciente, por vezes, inconsciente. O meu interesse não é muito grande, mas tenho uma grande ligação à minha infância, muitos dos meus filmes referem-se a experiências durante a infância, de algo que acaba por acontecer.

Por exemplo, em Cemitério do Esplendor, regressa o espaço hospitalar, referido em filmes anteriores e que é, de resto, uma referência da sua infância, de quando seguia o trabalho dos seus pais. Sente que neste filme, esse elemento político é aí referido?

Sim, porque é algo que faz parte do nosso dia-a-dia. A censura tem um papel muito activo e há uma presença militar em todo o lado. É impossível deixar de o ignorar. Mas normalmente eu não faço juízos políticos.

Em todo o caso, os seus filmes conseguem ser exibidos na Tailândia ou existe censura também nesse aspecto?

Normalmente, as pessoas descarregam-nos por torrentes via internet, mas todos os filmes já foram exibidos nos cinemas, com a excepção deste último. É verdade que ainda não passou pela censura, mas eu recuso-me a participar nesse processo devido a este regime militar.

Quando reflecte sobre as vidas passadas, em que medida reflecte no seu passado ou em outros elementos de espiritualidade ou cultura? É algo que encara como uma verdadeira possibilidade?

Sim, bastante. Porque fazer filmes tem a ver com uma descoberta pessoal. O que aprendemos na escola está sempre a mudar e pode não ser necessariamente realidade, pode ser propaganda. Pode fazer-nos questionar o que é a realidade. E toda a informação que existe hoje com a internet torna a vida toda algo confusa no sentido de perceber quem somos nós, o que é a Tailândia? Quais são as nossas crenças? O filme fala dessa confusão em diferentes camadas de informação.

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É uma pessoa religiosa?

Não, de todo. Acho que a religião é bastante perigosa.

Regressando aos filmes, até que ponto ficou surpreendido ao receber a Palma de Ouro em Cannes?

Muito surpreendido. Não estava nada à espera, mas acho que me abriu muitas portas, para mim e para novos públicos. E permite a inspiração, porque se eu sou capaz, você também é capaz. Não faço filmes dispendiosos, não uso actores profissionais ou muito conhecidos. Faço um cinema muito pessoal, que pode estimular outros.

Sente que isso também o pode estimular a trabalhar também fora dessa moldura que referiu?

Sim, claro. Até porque fico curioso. Não significa que esteja fechado a isso, mas até agora as ofertas não têm sido suficientemente interessantes. Eu próprio não quero ter muitas regras em termos de estrutura. Se calhar essas possibilidades apresentam muitas regras. Não tanto quanto ao que eu teria de fazer, mas mais sobre a narrativa.

Apenas a título de curiosidade, que cineastas admira mais? Mesmo que não tivesse de trabalhar com eles ou como eles? É claro que mostrou o trabalho de alguns, aqui na Cinemateca. Não sei se são alguma das suas referências…

Claro que gosto do Hou Hsiao-Hsien, do Tsai Ming Liang, que foram figuras muito importantes nos anos 90 e até hoje. Bem como Kiarostami. Mas gosto também, por exemplo, do Christopher Nolan, acho-o muito talentoso a lidar com o tempo, mesmo em filmes mainstream.

Sente-se completamente à parte do cinema mainstream? Ou tem algum guilty pleasure, de algum blockbuster que goste?

Não há culpa, eu vejo muitos filmes de Hollywood, mas insisto ver apenas no grande ecrã. Por isso é que não vi ainda As Mil e Uma Noites, ou os filmes do Pedro Costa, sobretudo porque não tive oportunidade de os ver em sala. Até porque não vivo em Banguecoque, mas numa cidade no interior.

É onde vive a maior parte do tempo?

Sim, numa cidade do interior, numa zona de montanha; a minha cidade natal é no Noroeste, mas há oito anos que vivo no norte, em Chiang Mai. Eu vivo a cerca de 40 minutos de Chiang Mai. Tem um cinema, mas passa sobretudo filmes de Hollywood. Por isso, quando vejo é sobretudo filmes de grande espectáculo, que gosto bastante (risos). Claro que muitas pessoas me mandam links dos seus filmes, mas eu hesito porque não é no grande ecrã.

Como reage a esta realidade em que cada vez mais os filmes são vistos em plataformas alternativas, o computador e até mesmo os smartphones?

Acho que é óptimo. É uma evolução a que não podemos resistir. E será talvez uma forma de condicionar a nossa relação com a imagem. As gerações futuras terão uma lógica diferente com as imagens.

Não é um purista, digamos assim…

Não, não. Tenho as minhas preferências, mas não faço juízos. Não podemos fazer esses juízos. Acho que é um caminho para se chegar a um lugar bastante interessante. Realidade virtual, por exemplo. A definição de cinema está a mudar. E estamos apenas no começo.

Considera então que estamos apenas no início do cinema como modo de expressão?

Sim. E de democracia. Veja bem, eu não me importo que as pessoas descarreguem os meus filmes, ainda que o meu agente tenha outra opinião (risos). Pessoalmente não me importo, se for uma versão legítima, é claro, com a cor correta (risos). Isso interessa-me mais.

No entanto, continua o seu trabalho de video art, presumo.

Sim, trago sempre comigo uma câmara pequena.

Sente, por exemplo, que esse trabalho, as instalações, workshops ou master class que faz são um trabalho paralelo aos seus filmes em grande formato, em termos de narrativa?

Claro, são diferentes.

Sente diferença entre o cineasta e o artista?

Isto é algo que o Miguel Gomes não gosta. Jantámos juntos ontem à noite e ele não concorda com essa ideia. Eu tenho uma grande ligação à minha infância e a infância é sempre um lugar de prazer e de imagens.

Nesse sentido, diria que estão próximos, porque o Miguel também tem essa proximidade com a infância, pelo menos nas suas curtas.

Mas quando somos crianças, não somos puristas. Somos o oposto. Como em muitas coisas na vida tenho uma aproximação às coisas com um ponto de vista infantil. É uma espécie de pré-condição, porque quando crescemos deparamos-nos com as condições de forma a podermos funcionar na sociedade. E o cinema também é uma condição.

Em que trabalha agora? Algum trabalho que possa resultar num novo filme?

Trabalho em novos elementos artísticos, numa performance de projecção de luz. É algo que irei apresentar em Bruxelas, se tiver tempo para ir. Entre 21 e 25 de Maio próximo. É um espectáculo sem actores, apenas com luz.

Mas com som, presumo…

Sim, com um grande desenho de som. É uma peça gémea do Cemitério do Esplendor. Uma continuação, mas mais abstracta.

Sem um ecrã, portanto.

Não, com vários ecrãs. Mas o storytelling é mais como um sonho.

Considera-a como uma espécie de instalação?

Acho que é cinema, mas de uma forma tridimensional.

O cinema no futuro?…

Não, não. É algo clássico. Tem de ver (risos). Funciona com uma estrutura de teatro clássica, para apresentar essa ideia de espaço, de profundidade e trevas.

Mas já que falamos de futuro, como é que vê esse futuro do cinema? É algo que conceba ou é algo demasiado abstracto?

O cinema no futuro? Depende de quanto no futuro (risos). Eu sonho que podemos ligar-nos, que a nossa mente pode ligar-se, de forma a poder partilhar imagens. Neste caso, não necessitamos de um projector. Necessitamos apenas da nossa mente.

Cinema como algo sensorial?… Uau…

Sim. É algo que irá acontecer.

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Eu ia sugerir a realidade virtual, mas parece-me que na sua concepção, isso já está ultrapassado (risos)… Vejo que já está muito à frente.

Por isso perguntei quanto tempo considerava essa projecção (risos). Estou certo de que isso irá acontecer. Eu tenho lido muito sobre ciência neurológica.

O Joe medita, certo?

Sim, e acho que partilhar sentimentos como inseguranças, ansiedade, felicidade através desta ‘onda de informação’ é realmente possível. E irá criar uma nova forma de cinema.

Isso não é um pouco o que acontece no seu cinema, onde somos projectados em algo em que queremos acreditar que existe. Sejam vidas passadas ou outra coisa… A imaginação também poderá ser usada como uma ferramenta?

Em Cemitério essa ideia é evocada de uma certa forma. Mas é um estado ainda muito primitivo. O cinema é linear.

Em que sentido?

Temos de ir do ponto A ao B e etc. Para poder ter essa experiência.

Isso é a narrativa?

A narrativa e a informação, a emoção. Acho que o cinema e as outras coisas podem estar ligadas à ciência. Nós tomamos medicamentos para nos curarmos, mas a arte tem uma relação próxima com essa química.

Não posso deixar de recordar aquelas camas de hospital, em Cemitério, com aquela luz maravilhosa. Pode explicar um pouco esse significado?

Para mim, tem a ver com essa pesquisa sobre o diferente espectro de cores que se pode…

Curar?…

Não. Implantar memória falsa. Em ratos. Implantam essa memória falsa em ratos, com diferentes espectros. Eu apenas imagino que pode ser uma espécie de conspiração.

Na verdade, é uma ideia bastante subversiva (risos)…

Sim, mas sugere também que o cinema é isso. Quando se vê, no meio do filme, uma cidade em que a cor muda – não sei se reparou -, a cor muda de verde para azul, é para reflectir essa máquina, o que está a ver no filme é uma máquina…

Kick the Machine, como o nome da sua produtora (risos)…

É como se fossemos nós a sonhar, como se fossemos nós a dormir nessas camas.

De certa forma está a testar o futuro do cinema.

É só uma ideia.

Pressinto que algo irá sair daqui no seu futuro.

Talvez.

De certa forma, o seu futuro está sempre relacionado com o seu passado.

Sim. Acho que o que estamos a fazer é isso mesmo. Quando tiramos uma fotografia, quando colocamos filtros no Instagram, estamos a colorir a nossa realidade. Portanto, é sobre isso.

É um fã de Instagram?

Infelizmente, não. Mas uso o twitter.

Muito obrigado pelo seu tempo.

Foi um prazer.

 

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