Terça-feira, Março 19, 2024
InícioClássicosCiclo Joseph Losey, cineasta essencial: o espelho perverso da luta de classes

Ciclo Joseph Losey, cineasta essencial: o espelho perverso da luta de classes

No regresso às salas, nesta primavera que se revelou tardia, recuperamos o cinema profundamente artístico e engenhoso (ou mesmo esteta) de Joseph Losey (1909-1984), celebrando um estilo naturalista e modernidade suavemente decadente, em algumas obras-primas pouco tocadas pelo tempo. A programação deste ciclo promovido pela Medeia Filmes é de luxo e inclui seis clássicos em cópias digitais restauradas, representativas do melhor da sua filmografia, além de quatro outras fitas reservadas apenas apresentações limitadas no cinema Nimas, em Lisboa. Um espantoso zoom (movimento de câmara que funciona quase como assinatura de Losey nos anos 60) no cinema Loseyano que é obrigatório não perder. Desta selecção apreciaremos o seu trabalho com Jeanne Moreau, Julie Christie, Monica Vitti, bem como Dirk Bogarde, Stanley Baker ou Alain Delon, entre outros.

O pequeno ciclo é constituído por Prisão Maior/The Criminal (1960), Eva/Eve (a versão director’s cut), O Criado/The Servant (1963), Acidente/ Accident (1967), Mr. KleinUm Homem na Sombra (1976) e ainda The Go-Between – O Mensageiro (1976). Além destes serão ainda apresentados, em sessões especiais (no Nimas), The Big Night (1951), o seu último filme nos EUA, antes do exílio, The Gypsy and the Gentleman(1958), Modesty Blaise (1966) e Cerimónia Secreta/Secret Ceremony (1968). Depois de uma belíssima e muito completa retrospectiva de Losey no festival de San Sebastian, em 2017, a que tivemos oportunidade de de seguir, impõe-se agora uma redescoberta com este ciclo que irá decorrer em Lisboa e em várias cidades do país.

Cineasta essencial, natural de La Crosse, Wisconsin, oriundo de uma família intelectual, Joseph interessa-se pelos problemas sociais motivados pela Grande Depressão, conhece Bertold Brecht, mas também o historiador avant garde Jay Leyda, com trabalho relevante na União Soviética (por exemplo com Eisenstein). Mais tarde, tornar-se-á exímio em manipular os instrumentos de poder e conflitos de classe, tão bem explorados em diversos filmes deste ciclo, sobretudo na carreira que foi forçado a fazer do lado de cá do Atlântico, depois das suas simpatias de homem de esquerda o terem forçado a um exílio em Inglaterra. Apesar de ser apresentado à alta sociedade londrina será precisamente essa que irá servir-se para explorar o sexo como um instrumento de poder, luta de classes e submissão. Algo que é particularmente evidente nos elementos de perversão predadora de O Criado/The Servant (1962), bem como em outras personagens da obra de Losey, como veremos também em Acidente/Accident (1967) ou mesmo em O Mensageiro/The Go-Between (1971).


Ao longo de abril e maio teremos então a oportunidade de apreciar com algum detalhe a colaboração de Losey com o autor Harold Pinter, num trio de filmes incontornáveis em que o desenho dessa narrativa casa de forma admirável com a mise-en-scène endiabrada do cineasta. Além do já citado O Criado, na estreia de Pinter a escrever para cinema, mas também em Acidente, prémio do júri em Cannes nesse ano, e ainda O Mensageiro. A esse lote poderá associar-se também o neo-classicismo de Eva (1962), com uma Jeanne Moreau fatal como o destino, no filme em que Pinter terá assumido numa entrevista a Michel Ciment que lhe “levou muito tempo superar que Eva era melhor que O Criado”.

O programa completa-se com uma viagem pungente ao submundo presidiário em The Criminal/Prisão Maior (1960), assente no perfil robusto de Stanley Baker, um actor especialmente vocacionado para uma pulsão de violência interior e abstração que parece abundar no cinema Losey (e de modo particularmente vibrante em Eva). De certa forma, Baker compreenderá um espaço semelhante ao ocupado por James Dean no cinema de Nicholas Ray (e, já agora, também de Kazan). De certa forma, esta violência sente-se igualmente no incontornável Mr. Klein – Um Homem na Sombra (1976) a permitir a Alain Delon provavelmente a sua melhor prestação – pelo menos, foi esse filme que o actor francês escolheu para mostrar em Cannes após receber, em 2019, a sua Palma de Ouro em homenagem à sua carreira.

Quando comparado com cineastas maiores do cinema americano, como Orson Welles, Nicholas Ray ou Elia Kazan, o nome de Joseph Losey surge habitualmente desmerecido. A verdade é que são todos contemporâneos e os dois primeiros oriundos do mesmo estado do Wisconsin. No caso de Ray e Losey, não se resume só à sua vizinhança, já que ambos pertenceram à mesma geração (andaram até no mesmo liceu em La Crosse, no estado do Wisconsin) e colaboraram juntos no living theatre, que dramatizava lutas sociais. O projecto Triple-A Plowed Under (1936) era uma peça de teatro agitprop de referências de esquerda e fundo social, gerado a partir da crise do final dos anos 20 e das influências da revolução bolchevique.

O Rapaz dos Cabelos Verdes

Apesar de ser o mais novo, Welles acabaria por ser o primeiro a estrear-se como realizador (em 1941 com Citizen Kane, apesar de entrar também num exílio artístico e permanentes guerras com estúdios) ao passo que Losey e Ray apenas em 1948, (apesar de Losey ter feito várias curtas antes) respetivamente com O Rapaz dos Cabelos Verdes e They Live By Night. Todos na RKO do anticomunista Howard Hughes. O mesmo que haveria de os assinalar na ‘caça às bruxas’. Ao exílio juntar-se-ia Ray (e também Fuller) já em perda de credenciais em Hollywood depois do período do studio system.

Losey acaba assim por ser aquele que mais acaba por se adaptar ao seu exílio, em parte talvez pela experiência no género noir e série B (Lawless, o remake de M, de Fritz Lang, e The Prowler, todos de 1951). Acaba por interromper a montagem de The Big Night (8 e 12 de Maio), para trabalhar em Imbarco a mezzanotte/Stranger on the Prowl (1952). Haveria de regressar aos EUA, mas impossibilitado de encontrar trabalho (teatro ou rádio) decide instalar-se em Londres em 1953, tentando integrar-se no sistema de produção britânico. Passaria ainda pelos estúdios da Rank e Hammer, sem grande relevância. Acompanharia à distância o movimento do Free Cinema.

The Servent/O Criado

Depois dessas experiências, acaba por receber apoio na indústria de cinema britânica por influência dos conhecimentos do realizador Anthony Asquith (um homossexual reprimido e com problemas alcoólicos). Losey considerou, com ironia, que Asquith o “atirou brutalmente para a alta sociedade inglesa”. Foi aí que tomou conhecimento do romance The Servant de Robin Maugham, um amigo de Asquith, que lhe abria as portas do milieu mais intelectual londrino. É aí que conhece o já muito experiente Dirk Bogarde, qua na altura vivia já com Tony Forwood, um homem requintado juntamente de quem haveria de partilhar a sua vida inteira. Do seu encontro com Dirk dirá o seguinte: “Without this my life could have turned out quite differently”. Só que a tentativa de filmar aquela novela explosiva que tocava temas tão sensíveis não encontraria produtor capaz de a assumir naquele início dos puritanos anos 50. Haveria de decorrer quase uma década, em 1963, precisamente durante a rodagem de Eve, que Losey receberia um telefonema de Bogarde informando-o que Harold Pinter estreava-se a adaptar uma novela para cinema The Servant, apesar de incluir, na altura, um outro realizador e algumas cenas “inconsistentes”. Assim começaria uma relação, inicialmente complexa, de Losey com Pinter (“estava escrito 75% de má qualidade e impossível de filmar, apesar de conter já algumas cenas que ficaram como foram escritas”). Entretanto, Bogarde que fora pensado para o papel principal de Tony tornara-se menos adequado com mais dez anos, acaba por ser a escolha certa para o mordomo Barrett.

Não será seguramente indiferente o facto do cinema de Losey se identificar muito mais com o cinema europeu, onde se tornou um dos nomes maiores (e também mais controverso) depois do seu exílio em Inglaterra, mas também em Itália e França.

Eva (1962)

Acabará por aceitar o convite dos irmãos Hakin para fazer Eva (1962) que já haviam trabalhado com Renoir e Carné (além de depois ainda com Chabrol, Buñuel, Antonioni ou Resnais), nomes relevantes na produção europeia antes e depois da guerra. Adaptado de um romance manhoso (potboiler) de James Hadley, um triângulo amoroso entre um argumentista galês Stanley Baker como seu fatinho justo e casado com Francesca (Virna Lisi). Eva é o desejo não reprimido do barroco italiano, do filme de arte dominado por uma mulher fatal – Jeanne Moreau – em plena baía emoldurada pela arquitectura, a arte de Veneza e o embalo do tema de Billie Holiday. Por certo empenhado em manifestar o seu contributo para a uma ’nova vaga’ do cinema europeu, Losey lançou-se com garra a esse conto passional atravessado pelo excesso e decadência em espaços venezianos que muito furor, como o Harry’s Bar ou o Hotel Danieli, terá feito no festival de Veneza desse ano (e que perderia o Leão de Ouro para A Infância de Ivan, de Tarkovsky e o prémio do júri para o terceiro filme de Godard, Viver a sua Vida). Eva é assim um filme que pede uma visão que possa superar até algum num certo tom de peso num high art pós-moderno.

Quando Losey (também ele bisexual) entra em contacto com Bogarde já ele vivia com o companheiro de longa data Tony Forwood – novela The Servant (1948), de Robin Maugham (sobrinho de Somerset Maugham, também gay, segundo visconde de Maugham) – envolvendo espionagem (era agente do MI6), homossexualidade, marxismo e alcoolismo (espelho), aliás, muito inspirada em experiências pessoais, embora aqui algo heterossexualizada. É tremenda e sibilina a luta de classes vivia em The Servant, em que a distinção do criado se impõe à placidez aristocrata do patrão. Para já não falar do enredo psico-sexual destilado e que acabará por submeter o patrão à consumada inversão de papéis do final. Os indícios estão lá deste o início. Igualmente dados pelo requinte narrativo do tratamento de Pinter (que veremos numa pequena cameo) como pelo jogo de mise-en-scène. Veja-se a genial sequência de abertura a acompanhar o distinto cavalheiro de chapéu de coco e gabardine (o sempre distinto Dirk Bogarde) que empurra com um dedo a porta e se irá apresentar como empregado Barrett ao belo adormecido patrão Tony (a revelar a tremenda revelação James Fox).

Será precisamente esta relação de reflexo de teor mefistofélico tão bem desenhada pelo uso que Losey obtém do reflexo dos espelhos, certamente em Eve e The Servant, concretizando essa troca, entre uma imagem real e virtual, em movimentos captados pela fotografia monocromática da câmara da grande Douglas Slocombe. Se bem que o melhor reflexo seja mesmo a cena em que Tony surpreende Barrett com Vera no seu quarto. O plano contra-picado que mostra apenas a sombra do torso do criado a fumar diante do rosto atónito do patrão a olhar para cima é simplesmente brutal. Ou a manipulação (uma vez mais) sexual de induzir Vera, a criadita pinup (na muito adequada Sarah Miles), para gradualmente substituir o seu interesse amoroso de classe naquela casa em Chelsea. Muito se poderia escrever sobre este filme que nos desafia a outras revisões, tão bem servido por uma câmara que desfolha toda a sensualidade que se presente no ecrã e que explode na orgia barroca do final.

Acidente (1967)

É já um Losey demasiado british que temos em Accident/Acidente. Num dos diálogos iniciais no interior de um colégio em Oxford, um professor (Stanley Baker) comenta para o outro (Dirk Bogarde): “uma estatística revelou que 70% dos actos sexuais cometidos por de estudantes na universidade de Colenso, em Milwaukee, ocorriam de noite, 29.9% entre as duas e as quatro da tarde e 0.1% durante uma aula de Aristóteles”. Depois de uma pausa, um terceiro (Alexander Knox) interroga-se; “Surpreende-me que Aristóteles esteja no programa no estado de Wisconsin”.

De início, o filme diz-nos que “estávamos todos no ‘acidente’” com que abre o filme. Um ‘acidente’ que ocorre durante uma tarde de domingo em que o guião de Pinter reúne os dois professores (Baker e Bogarde) num almoço e partida de ténis e críquete, muito álcool e uma distração sob a forma da presença de um casal jovem de alunos (Jacqueline Sassard e Michael York), no que se revela num jogo de poder sexual entre os dois professores e o aluno diante da jovem princesa austríaca. E, sim, com alguns planos em que o cineasta americano se serve do seu ‘zoom’ com alguma propriedade. É talvez também neste filme que a parelha Pinter-Losey atinge o seu zénite, conquistando o prémio do júri em Cannes.

O Mensageiro (1971)

A Palma de Ouro chegaria três anos depois, em 1971, com impressionista O Mensageiro/The Go-Between e o celebrado romance de L. P. Hartley transmitido ‘por correspondência’ entre o par Julie Christie (talvez um pouco passé para uma adolescente) e Alan Bates, e a música catchy de Michel Legrand, superando, de forma algo surpreendente, o rival Luchino Visconti com Morte em Veneza, nada menos com… Dirk Bogarde. Rezam as crónicas que o ator terá mesmo enviado uma nota privada e confiante a Losey, dizendo ‘espero que não ganhem’, confirmando assim todo o favoritismo do projecto do realizador italiano. O desfecho antes da soirée dos prémios foi tal que um inconsolável Luchino abandonara o festival, regressando apenas quando lhe ‘confecionaram’ um prémio especial. É o exercício do ‘tempo proustiano’ de Losey, mas em que, uma vez mais, retrata um novo jogo de poder, entre o plebeu Ted Burgess (Bates) e toda uma fragilidade da aristocracia galante britânica antes da 1ª Guerra Mundial.

Mr. Klein – Um Homem na Sombra (1976)

Será durante o segundo conflito que decorre o irrepreensível Mr. Klein – Um Homem na Sombra (1976), um trabalho bem mais enigmático que os anteriores, já durante a sua experiência francesa, marcado pela dúvida de uma identidade judia na França ocupada pelas tropas nazis. Um rigoroso Alain Delon, tão violento na sua imobilidade (já depois de Ofício de Matar/Le Samourai (1967), de Melville) cumpre com eficácia a intriga de um colecionador de arte francês individualista incomodado essa dúvida acentuada por essa interrogação e perseguição permanente, em que nos remete até para o próprio passado de Losey durante o McCarthismo em relação aos ‘vermelhos’. Ou, de outro ponto de vista, poderemos até encarar essa versatilidade, ou dupla identidade, para ocultar não só as complementaridades entre diversas personagens masculinas na sua obra (e de que este ciclo é manifestamente abundante), mas sobretudo para ocultar as preferências sexuais (muitas vezes deixadas no armário) numa era em que isso (provavelmente) significaria o fim de uma carreira.

(peça publicada no site c7nema.net)

Programa

PRISÃO MAIOR

The Criminal (1960)

(a partir de 19 de abril)

O CRIADO

The Servant (1963)

(a partir de 19 de abril)

EVA

Eve (1962)

(a partir de 20 de abril)

ACIDENTE

Accident (1967)

(a partir de 20 de abril)

MR. KLEIN – UM HOMEM NA SOMBRA

Mr. Klein (1976)

(a partir de 21 de abril)

CERIMÓNIA SECRETA

Secret Ceremony (1968)

(dia 3 e 11 de maio)

THE BIG NIGHT (1951)

(dia 8 e 12 de maio)

THE GO-BETWEEN – O MENSAGEIRO

The Go-Between (1971)

(a partir de 13 de maio)

THE GYPSY AND THE GENTLEMAN (1958)

(a partir de 13 de maio)

MODESTY BLAISE (1966)

(a partir de 13 de maio)

RELATED ARTICLES

Mais populares