Terça-feira, Março 19, 2024
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Marco Martins: “Este não é um filme onde vais para te purificar”

Conversa com Marco Martins sobre Great Yarmouth – Provisional Figures um drama social que desafia classificação e onde acontece a matança do outro lado do resort.

Marco Martins fala-nos deste projecto radical sobre a emigração portuguesa no Reino Unido, que começou como uma peça de teatro integrada no FITEI em 2018. Um filme poderosíssimo que chega finalmente às salas de cinema. Por aqui recordamos a nossa entrevista, ocorrida em setembro passado, quando esta produção de A pedra no Sapato esteve a concurso no festival de San Sebastian. Como não podia deixar de ser, uma conversa à flor da pele, motivada ainda pela proximidade dessa viagem às profundezas da condição humana.

O projeto Great Yarmouth começou em 2017, logo após a consagração de São Jorge, em Veneza, quando Marco Martins recebeu um convite para fazer um espectáculo, precisamente na cidade de Great Yarmouth, no Reino Unido, a convite do produtor italiano Renzo Barsotti, com quem já havia trabalhado há já uns anos, e com a oportunidade de trabalhar com comunidade portuguesa que lá vivia. Um trabalho que se revelaria adequado até por complementar o trabalho comunitário de teatro que fazia na região. Parecia-me ideal, refere, porque eram as pessoas que tinham fugido da crise de 2015. E que depois seriam apanhada pelo Brexit e, logo a seguir pela pandemia.

Para mim, foi a tempestade perfeita, confessa Marco Martins. Ou seja, apanhei a pandemia e depois apanhei o Brexit. Foi uma rodagem muito violenta. Eu comecei a rodar em Março de 2020. Apanhei o último avião de Inglaterra para cá. Quando já estava o (Presidente) Marcelo a gritar “vocês têm de vir embora”. Fomos os últimos a ser resgatados. Portanto há certos aspectos do filme que estavamos a viver de perto.

Começou por aí o desenvolvimento do projeto teatral estreado em 2018, não só em Portugal, mas também Inglaterra, e em outros lugares. São que, quando a peça acabou percebi que não estava pronto para deixar aquele tema, aquelas pessoas. Por isso, comecei a fabricar este filme, baseado numa personagem que me foram falando. Só que não era a Tânia, a personagem interpretada com enorme voracidade por Beatriz Batarda. Aliás, no original ela é inglesa, como nos explica o realizador, apesar de desenvolver o mesmo género de trabalho. Este é um filme mais escuro, assume. Mas, por outro lado, acho que parte de uma pesquisa mais profunda daquela comunidade. Formalmente, acho até que é bastante distinto. No entanto tem em comum o facto de seguir aquelas pessoas. 

Nuno Lopes emerge também entretanto, como sempre avassalador. Até porque não necessita de muito tempo de ecrã para revelar a sua potência que acaba por dominar e contaminar todo o espaço. Aliás, Martins considera que a personagem de Nuno Lopes não é secundária. Uma coisa nova que eu acho é que, apesar de haver muitas personagens secundárias, este é um filme mais coral. Não é só o Nuno, há muitas personagens. Humanas e animais. Algo que estava já definido desde o início na peça. A começar pelos textos do Coetzee, quando escreve “porque é que a morte dos animais não nos causa qualquer dor?” Há um texto (do Coetzee) de que gosto muito e que diz “a única coisa que nos faz matar um animal é o facto de ele não falar”. Ou seja, a única coisa que nos faz matar um peru é o facto de ele não falar.

Uma delas é a de Bob, um antigo guarda florestal que trabalhava nos pântanos e fazia passeios de observação de pássaros, e que acaba por ser aproveitada para o filme. Na peça, ele falava sobre a migração dos pássaros. Optei por que fosse a personagem que fecha e que abre o filme. Acompanha essa contextualização do lado animal e humano, embora eu ache que é tudo o mesmo lado. O resto das personagens são de emigrantes que fui ouvindo ao longo destes anos. Sobretudo na reconstituição do seu dia-a-dia, daqueles hotéis em que roubavam o que comiam, daquelas horas de trabalho, dos turnos, da dureza do trabalho da fábrica. Dos cheiros. Tudo isso são coisas que vão sendo narradas.

Sobre a composição de Beatriz Batarda, o cineasta reconhece que ela é um monstro. Um monstro como pessoa. Tem aquele sonho, mas todo o resto nela é de uma frieza enorme. Reconhecendo-lhe a habilidade de aceder a todos os tipos de emoções – as mais profundas, as menos profundas. É como uma esponja. Houve também um trabalho de campo físico que foi também importante e transformador, nas fábricas para conhecer aquela realidade. Por muito tempo que fosse, era algo que eu queria que eles fizessem. Por isso trabalhou em fábricas e em pubs de Yarmouth. Chegando mesmo a criar uma forma de andar especial: a forma dela andar foi algo que descobriu a trabalhar numa fábrica. Não em fábricas em Inglaterra, porque tinham medo do filme e não nos deixavam entrar.

Great Yarmouth – Provisional Figures é daquele filmes que existe para nos interrogar. Para nos questionar. Por muito que nos custe. Como diz Marco Martins: Acho que este não é um filme onde vais para te purificar. A questão pode ser até: onde é que cabe este cinema hoje em dia? Eu acho que a arte, os livros, os filmes, servem para levantar questões. Para desinquietar. Mesmo quando não se tenha a ambição de resolver os males do mundo. Ainda assim, pelo menos, com a intenção de resistir. Talvez por isso, refere Marco que ficaria muito contente se pelo menos as condições de trabalho daquelas pessoas fossem melhoradas. Acho que isso era o essencial.

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