Terça-feira, Março 19, 2024
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Lobo e Cão: Quando queer significa apenas querer

Em Lobo e Cão, Cláudia Varejão supera a lógica da ficção e documentário, do impulso binário masculino-feminino, da reavaliação da condição feminina, do jogo queer-straight para oferecer uma proposta de procura do que existe dentro de cada um. Um pouco como a síntese invocada do texto de Paul Preciado, Coragem de sermos nós mesmos, mencionado na abertura, sobre a “insula, a tal metáfora para o que lá dentro vive, o tal mistério de emoções”.

É esse mistério da identidade que importa investigar nesta ilha de filme. Até porque Lobo e Cão não propõe um mapa narrativo à partida, mas apenas uma caminhada em que seguem lado a lado estes corpos, numa deriva quase existencial – o de Ana e Luís, ou de Ana Cabral e Ruben Pimenta, ou do Cão e do Lobo, a ordem interessa menos; ele sempre mais orgulhoso e destemido, ela mais insegura, embora sempre justos nas personagens que os transportam ao longo desse território insular no seio de uma comunidade queer local que vive a liberdade na açoriana ilha de São Miguel.

Nessa alternância embala o filme que termina num ritual místico e sugerir-nos o reverso da celebração religiosa local. Ao fim e ao cabo, não estamos assim tão longo dos ‘duplos’ de Amor Fati e dos respectivos reflexos emocionais, aqui com a possibilidade de fabricar papéis, ou dando-lhes as vestes de uma ficção instalada entre as paredes-meias da realidade.

Este é mais do que um filme de género. Até porque Varejão parece aproximar mais o queer do querer, ”porque quando quero, quero muito!”, como diz a Ana. E é isso que é bonito de ver, sobretudo com a amplitude das possibilidades desta ilha, que delimita, mas também empurra para ver mais além, permitindo que a sua beleza natural revele uma espécie de Génesis, onde tudo parece renascer. De novo, na sua essência. Mesmo quando é assombrado por um certo e inevitável lado negro – sejam os negócios escuros do tráfico ou o mau-olhado daqueles que ainda não aceitam a diferença. E que, talvez ainda aceitassem o sacrifício de queimar o cordão umbilical no forno da cozinha no infortúnio de nascser  fêmea, para logo “saber qual era o seu lugar”.

Lobo e Cão (Terratreme)

Talvez o melhor seja aceitar o permanente torvelinho de sensações, de emoções que sempre se sobrepõe à tal lógica de “ser” ficção ou imagem do real, de ser rito religioso ou celebração. Como no momento em que Luís e todos se entregam e expõem como num altar, no meio da cor, da purpurina e do fogo de artifício. E nós diante deles, alvos daquele olhar que nos olha e observa em contracampo, como que a validar o papel que cada um deseja assumir na sua ficção ou documentário de vida.

Já se sabe que Cláudia Varejão filma bem os corpos, com um fulgor colorido que os abençoa, seja em ritual de procissão ou em êxtase festivo. Sigam, portanto, a luz interior, gozando essa plena liberdade e celebrando a escolha e toda a sua exuberância. Já agora, “que venha depressa a noite, para matar os desejos”!

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