Sexta-feira, Março 29, 2024
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Peter von Kant: entre o original e a cópia

Como abordar meio século depois um filme como Petra von Kant, um manual de sado-masoquismo, em pleno ano de 1972, considerado um clássico absoluto na obra de Rainer Werner Fassbinder? Aliás, o original estará ainda em exibição na Operação Fassbinder a Leopardo Filmes dedica ao realizador alemão. O prolífico cineasta francês optou por um respeito meticuloso do rigor do décor, do decalque narrativo e até da própria dramatização. Apenas com o flip da troca de sexos. O seja, assumir o que na altura fora usado apenas como forma velada, ou seja, a própria personalidade de Fassbinder, espelhado na personagem da designer Petra von Kant, bem como o seu romance assolapado com El Hedi Ben Salem (agora aqui como Amir Ben Salem). Tudo muito explícito, portanto. Como já fora, nesse sentido, a sua persona velada no corpo feminino.

O problema de François Ozon é o seu próprio modus operandi, em que uma vez definida a ideia tudo se desenrola com rapidez. Aliás, ele é o próprio a assumir que gosta de fazer um filme por ano. Percebeu claramente que tinha ganho a persona de Fassbinder em Denis Ménochet, bem como na espantosa funcionalidade gestual de Stefan Crepon como Karl (na exacta medida de Irm Hermann, como a gueixa dorida Marlene a quem é vedado o amor), a cumprir essa dimensão de sado-masoquismo.

Isabelle Adjani e Hannah Schugulla

Temos ainda Isabelle Adjani como uma variante de Sidonie (Katrin Schaake); temos até a decoração dessa casa habilmente a recriar aquele ano, onde não faltam sequer, os frescos que decoram o estúdio da estilista do filme agora copiado. Se bem que no original integralmente interpretado por actrizes e até coadjuvado pelos manequins feministas, apenas é contrariado pelo falo omnipresente nos frescos que dominam o cenário do da estilista Petra.

Ao invés o atelier do cineasta Peter tem suaves nuances, mesmo que não abdique totalmente da evocação do ambiente original. Só faltam as cabeleiras, como que a conferir uma variante dos diferentes estados emocionais porque que passa a manipulação, a humilhação e o delírio de Petra von Kant.

Ich liebe dich, dirá a certa altura diante de Schygulla. Que no filme deste ano a mesma atriz assume o papel da mãe que acaba insultada pelo próprio filho. Mas ficam pelo caminho outros elementos que ampliavam o cinema de Fassbinder e acabam por menorizar o cinema funcional de Ozon. Desde logo, a começar pelo envolvimento do set com os movimentos da câmara hipnóticos de Michael Ballhaus, englobando o jogo dos espelhos, a figuração humanista de todas essas naturezas humanas (vivas ou mortas?) como que prolongando e toldando a visão pelo gin e a dominação. O próprio Fassbinder aparece, no filme que acabámos de ver, logo no genérico, como que a dizer (haveria alguma dúvida?) de quem se trata. Ou na reprodução do recorte de jornal, o único momento (verdadeira cameo) em que Rainer aparece no seu filme.

As Lagrimas Amargas de Petra Von Kant (1972)

Há algo insuperável no filme de Fassbinder, quando no final as imagens da parede, como na verdade Marlene, ganham vida. Ozon serve-se do cinema, do screen test a Ben Salem. Só que essas sobras e essa luz não se comparam às figuras do papel de parede da casa de Petra von Kant, que parecem metamorfosear-se e habitar diferentes personagens. Como que a dizer, afinal não somos todas whores (putas!) Antes de se escutar a banda sonora dos Playters: Oh, yes, I’m the great pretender!

(artigo originalmente publicado a 11 de Fevereiro durante a cobertura do Festival de Berlim)

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