Terça-feira, Abril 23, 2024
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Mato Seco em Chamas: quando o absurdo apocalíptico é apontado ao bolsonarismo

O filme-choque no último festival de Berlim, mesmo que arredado da competição oficial, foi também o vencedor avassalador do passado IndieLisboa – conseguindo a proeza de conquistar o prémio da competição nacional e internacional (entre muitos outros festivais que tem incendiado).

Será até nessa capacidade assumida de superar todas as fronteiras entre o documentário e a ficção, mas também de alinhavar uma compostura formal a uma certa anarquia fílmica, que repousa grande parte dos louros deste projecto bicéfalo conduzido (mas que também se deixa conduzir) pela dupla luso-brasileira, Joana Pimenta e Adirley Queirós.

Na verdade, é difícil sair deste filme ignorando o ritmo gangsta funk no final sem cantarolar a letra (que lança também o trailer): Faroeste, contos do crime, é o pau que rola; DF Faroeste, guerra entre gangue; a molecada crescendo no meio do bangue-bangue…

Mato Seco em Chamas aí está, nas nossas salas – uma co-produção entre a brasileira Cinco da Norte e a portuguesa Terratreme – no culminar da semana escaldante que poderá alterar o rumo da política brasileira que navegou sob a máxima “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, e que no seu percurso fez terra queimada dos inúmeros focos de apoio regional ao cinema, derrubou uma boa parte da selva amazónica e ergueu com orgulho a lei da bala como argumento inabalável sobre aqueles que nada têm. De certa forma, tudo isso está implicado no modelo “absurdo” (mas também desesperado), que Adirley (e Joana) escolheu para o seu filme, e como descreve na nossa entrevista em Berlim.

É então no meio do colapso social de um Brasil carente, na eminência de ser resgatado por um radicalismo evangélico messiânico, que emerge o tremendo empoderamento de um duo feminino que coloca uma boa dose de realismo radical nessa narrativa apocalíptica. Dir-se-ia um encontro assombrado entre uma versão tropical de Mad Max enfrentando um Deus e um Diabo na terra do Sol.

De um lado, Chitara (o seu nome verdadeiro, Joana Darc, é em si mesmo um prenúncio dela própria), que se converte em ‘gasolineira’ da favela do Sol Nascente, depois de descobrir petróleo num lote de  terreno, na Ceilândia, a cerca de 20 kms de Brasília. Ela receberá a companhia da irmã Léa (Léa Alves), acabada de sair da prisão por tráfico de droga, para a ajudar no negócio dessa ‘refinaria popular’, ao mesmo tempo que faz a mais alucinante campanha pela representação bem concreta do seu alvo – o PPP, o Partido do Povo Preso. O contraste é sugerido quando Adirley, Joana e o seu câmara se infiltram no derradeiro comício de apoio a Bolsonaro, junto ao Palácio do Planalto.

Léa e Chitara entre a realidade e a ficção (Terratreme)

É nesta constante deambulação, em que se iludem as diferenças entre a realidade e a ficção mais desbragada, que esta distopia reivindica o seu espaço se solidifica num corpo paredes-meias entre o documental. Desde logo sublinhado pelo aproveitamento que Pimenta e Queiróz fazem das personagens reais – e em que o realismo de Léa é ‘quase’ além da ficção – convidando-as às ficções delas próprias, bem como do seu irmão, Cocão. De resto bem evidenciado no magistral plano-sequência em que Léa fala com a câmara e revela as condições da sua prisão.

Temos então um cocktail altamente explosivo que vai sendo gerido por Joana Pimenta e Adirley Queiróz, de acordo também com o seu universo fílmico de baixo orçamento aflorado pelo cineasta brasileiro nos seus projectos anteriores (Branco Sai, Preto Fica, de 2014, e ainda Era uma Vez Brasília, de 2017). Um conjunto que a montagem da experiente Cristina Amaral abraça de forma harmónica. Por ali se capturam também o combustível da transe (e das transas!) de Léa e Chitara. Seja com o ritmo endiabrado da banda Moleka 100 Calcinha (de onde se percebe o título do filme), em que o tempo deixa de ser um elemento relevante para uma mise-en-scène muitas vezes refém do ‘tempo’ real desta realidade feita ficção. Porque aqui onde os anti-heróis são mesmo aqueles que fazem a história acontecer. Venha ela.

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