Terça-feira, Março 19, 2024
InícioCríticasMoonage Daydream: um Atlas chamado David Bowie

Moonage Daydream: um Atlas chamado David Bowie

Como recriar o universo e o génio de uma personalidade tão multifacetada como David Bowie? Um universo que se espraia ao longo de mais de meio século de música, poesia, arte e uma performance que rendeu diversas gerações. Uma dádiva caleidoscópica à arte que só poderemos comparar (porque sim!) com o cinema de Jean-Luc Godard.

Moonage Daydream é essa tentativa estética e até filosófica de ilustrar as diferentes arestas de um brilhante. Tal gesto de ambição só poderia mesmo ser acompanhado de um mergulho total, um verdadeiro embodyment fenomenológico. Apenas permitido ao documentarista Brett Morgan pelo acesso sem precedentes à colecção pessoal do artista facultado pela David Bowie Estate. Incluindo as suas peças de escultura e pintura, nunca publicamente divulgadas, bem como a sua poesia.

De resto, é até com uma reflexão de Nietszhe que começa esta experiência sensorial. Não só para indicar o road map desta jornada, quem sabe se para fornecer alguma pista para o seu permanente questionamento, seguramente para esclarecer a profundidade da sua escrita, ou talvez até para sugerir um fluxo áudio e visual que nunca se circunscreve às músicas ou às várias entrevistas que polvilham o universo Bowie.

Já se vê, uma complexidade que não estaria, por certo, ao alcance de todos. E o nome de Brett Morgan à frente deste portentoso trabalho é um conforto. Ele de quem se diz ter revolucionado o documentarismo americano. Pelo menos, com os créditos bem firmados ficou pelo mergulho que fez na carreira do produtor de Hollywood bigger than life, Robert Evans, em The Kid Stays in the Picture (2002), responsável por moldar a saga de O Padrinho, apostar no pouco conhecido Francis Ford Coppola e até de corrigir para o caminho certo as suas opções iniciais, ajudando-o a fazer um melhor filme. E percebemos também a forma como digeriu o documentário biográfico sobre o líder dos Nirvana, Kurt Cobain: Montage of Heck (2015), evitando os clichés do músico e centrando-se na investigação policial que o envolveu, de resto com um acesso livre a todo o material pela viúva de Cobain, Courtney Love, que lhe sugeriu a ideia deste projecto. E mais recentemente a tremenda viagem etnográfica de Jane (2017), uma vez mais fundindo imagens pessoais com o ambiente (neste caso) animal da investigadora Jane Goodall.

O resultado são quatro anos de estudo e combinação de elementos, além de um ano e meio de desenho de imagem e som, em que teve a colaboração próxima de Tony Visconti, o seu colaborador original, bem como a produção de animações por forma a criar um corpo único que transmita essa vontade de estar além deste mundo, mais perto das estrelas. Nesse sentido, Moonage Daydream é uma muito feliz combinação dessas várias vertentes por forma a aproximar-nos o mais próximo possível do seu mundo. Em certa medida, do seu Atlas, combinando diversos documentos, encarados quase como um arquivo, como forma de compreender a imaginação do seu criador, as suas diversas conexões, musicais e artísticas.

O mérito de Brett Morgan foi a de saber montar, combinar esses diferentes elementos, essa combustão filosófica, por forma a atribuir-lhes significados entre aquilo que olhamos e aquilo que nos é devolvido e que nos ajuda a pensar na complexidade do artista, autor, actor. A tal ‘experiência cinematográfica’, em que abundam inúmeras referências e que incluem, por exemplo, excertos dos expressionistas O Gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene, ou Nosferatu (1922), de F.W. Murnau, ou o surrealismo de Un Chien Andalou (1929), de Louis Buñuel, ou até mesmo excertos de O Triunfo da Vontade (1935), de Leni Riefenstahl (na tal encomenda de Hitler), bem como de Eisenstein (Ivan o Terrível), Kubrick (A Laranja Mecânica) o Ridley Scott (Blade Runner).

É mesmo Bowie que comenta a complexidade do tempo e o tal “manifesto da memória que surpreende o passado e o futuro sem chegar a ser verdadeiramente presente”. E por aqui se vê o mergulho fenomenológico de Bowie, aliás bem presente nos poemas que cantou. Registamos outra passagem: “não é a ti que o mundo se dirige, é algo que nos supera, num diálogo arcaico, possivelmente não mortal”. Isto para nos dizer que não há início nem fim. E que o significado é transcendente. Tudo é transcendente. Does it matter? Do I bother?

Quando entra a guitarra de Rock and Roll Suicide já estamos totalmente imersos. Time takes a cigarette, puts it in your mouth… É a persona de Ziggy Stardust, o tal space invader de guitarra em punho, provavelmente a mais mítica criação do rock, a render o povo a esta criatura insinuante, que se enquadra algures entre o masculino e o feminino embora sem desdenhar o alienígena. São quinze minutos arrasadores, em parte dominados pelo efeito da digressão Ziggy Stardust, bem como algumas entrevistas icónicas, que imprimem ao filme esse corpo multiforme, insinuante, divertido e permanentemente curioso (um verdadeiro ‘absolute beginner’). Ele que assume que aos 14 anos desejou ser um mod. E que depois seguiu a sua procura. “Só não queria ficar estereotipado”, citamos de cor. E sobre a sua assumida bissexualidade dirá a sorrir numa entrevista “sim conheço bastantes homens…”

Assim foi atravessando os diversos tabus da sociedade, não contemplando fronteiras no seu pudim de novas ideias. Bowie que vai assumindo que nunca esteve seguro da sua personalidade, preferindo a designação de ‘coleccionador’ de personalidades. “Eu era budista na terça-feira e virava-me para o Nitezsche na sexta.” Mas também para o estado da arte, o uso da tinta, da luz, invocando o simbolismo de Vermeer, Tintoretto, etc, bem como o experimentalismo, os seus vídeos caseiros. No fundo, um mundo feito de ‘changes’, de transições, encaradas como desafios pessoais. De um permanente hit and run antes de ser catalogado.

Foi isso que fez o natural de Brixton (onde nasceu em 1947) mudar-se para LA, apenas porque detestava a cidade, e depois para Berlim, para procurar uma nova linguagem musical e novos processos de escrever junto de Brian Eno. Algo esotérico vital – como Heroes. Pelo menos, por um dia.

É claro que o filme compreende também o seu lado mais pessoal, mais familiar, como a relação de admiração com o irmão Terry (que lhe apresento o universo de Jack Kerouac e John Coltrane). Isto apesar de dizer que se ‘protege do amor’. Ele que nunca quis aparecer como em palco ele próprio. E que aos 33 anos já contava com 17 discos editados, participação em dois filmes e até uma inédita representação na Brodway.

Este Atlas chamado David encerra-se com palavras dele quando percebe que atingiu um estatuto em que já nada tem a provar. Mesmo quando assume os grandes concertos em estádios, sobretudo na digressão Let’s Dance. É este o vácuo da minha vida. O sucesso sem crescimento. Até porque assume que “nunca quis agradar as pessoas”, mas apenas “ser orgulhoso e fazer com que gostassem do que eu gostava. Não o que eles queriam”. É esse também o sentimento do caos controlado que assume a derradeira fase da sua carreira. “Caos e fragmentação é o que gosto. Não há uma verdade absoluta.” E é essa transcendência que o remete para os mistérios da vida. E a constatação da sua finitude. Does it matter? Do i bother? Yes, I do. Pois, a vida é fantástica, nunca acaba, apenas muda. So, let’s keep walking.

+

RELATED ARTICLES

Mais populares