Quinta-feira, Março 28, 2024
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João Mário Grilo sobre Campo de Sangue: “É suposto o espectador ser uma pessoa diferente quando sai do cinema”

Por estes dias, João Mário Grilo vive dias de extrema intensidade. Como se experimentasse até um momento de transição na sua vida. Um momento de passagem, a passagem do conhecimento, expressão que usará mais adiante para aplicar à paisagem do seu cinema. Em certo sentido, como a percepção de atingir a idade maior do seu cinema. Não só por se desdobrar para atender as apresentações diversas de Vieirarpad, o documentário estreado no início do mês sobre a pintora portuguesa Maria Helena Vieira da Silva e o seu companheiro de longa vida, o húngaro Árpád Szenes.

Para além disso, as recentes solicitações ligadas à promoção de Campo de Sangue, a sua nova ficção (a anterior foi Duas Mulheres, em 2009), que adapta o livro homónimo de Dulce Maria Cardoso, existe uma caução de responsabilidade entre o autor e o auditório, bem como as suas criaturas. Mas em que o autor sempre tem a escolha de optar pelo o lado divino ou uma dimensão mais monstruosa, como descreve Ariuna Bogdan na sua análise.

Portanto, João Mário não tem um, mas dois filmes que estreiam quase ao mesmo tempo. Talvez por aqui se compreenda a alegria e a redescoberta pela paixão de filmar, de fazer cinema. Uma actividade que há quatro décadas divide com a missão de docente de diversas temáticas de cinema na Universidade Nova de Lisboa.

E do que nos fala o filme? Sim, do “acto de criação”. Bem como da forma como as personagens (ou a sua própria dimensão monstruosa) se apropriam do seu autor. Neste caso, Grilo abre logo, no início, uma porta ao espectador, revelando essa dimensão privilegiada entre o autor e a personagem, mas para tudo baralhar em diferentes momentos. Não deixa de ser curiosa, por esse motivo, a aproximação que o cineasta da Figueira faz ao universo monstruoso de Frankenstein, em particular ao filme A Noiva de Frankenstein, de James Whale (1935), que a personagem de Carloto Cotta assiste no filme. Talvez aí, recorda a cinefilia que esse é justamente um filme em que a interferência do autor (no caso, Mary Shelley) acaba até por nos dar pistas para esta jornada de um falso noir que convoca a mitologia bíblica.

O ‘Boris-Carloto’ (Leopardo Filmes)

Talvez por isso, a certa altura da nossa entrevista, exclama: “eu agora quero é filmar”. No sentido de que tudo aquilo que fez antes — ensinar, filmar a arquitectura, filmar a pintura, mas não só, lhe revelam agora uma inesperada maturidade. O cinema da maturidade.

A nossa conversa ocorre precisamente neste momento particular em que a promoção destes dois filmes antecede um programa de produção que com este se complementa. No fundo, com a confirmação de um novo projecto documental ligado à pintura, com a biografia de artista portuense de origem argentina, Aurélia de Sousa, para concretizar ainda este ano, e ainda um esboço de ficção que poderá passar pela adaptação do romance de Jorge de Sena, Sinais de Fogo — um projecto com o condão de o transportar à sua juventude na Figueira da Foz, de onde é oriundo e onde decorre a acção do livro.

A autora diante da personagem – Luísa Cruz e Carloto Cotta, em ‘Campo de Sangue’ (Leopardo Filmes)

Não é comum um cineasta português ter dois filmes em exibição ao mesmo tempo… Neste caso, um documentário (Vieirarpad) e uma ficção (Campo de Sangue). Ainda por cima, o João Mário Grilo não é um cineasta que filma com tanta regularidade. Imagino que esteja a viver um momento muito particular para si.
Na verdade, foi uma absoluta casualidade. Coisas das estrelas… Não houve nenhuma manobra de concertação ou convergência. E os filmes tiveram até para estrear no mesmo dia! Algo que me parecia poder ser um pesadelo. Já é um pesadelo como é agora, que muitas vezes nem sei de que filme estou a falar ou se estou, de facto, a falar de um, falando no outro… É tudo cinema, não é!? “Fatiá-lo” em filmes é também muito uma comodidade de acesso. Por isso, esta proximidade acaba por ser aliciante, porque eu acho que existe uma linha entre os dois filmes. São ambos filmes importantes para mim, no sentido de procurar e encontrar direcções, e que marcam uma certa fase da minha vida, também.

Sim, curiosamente, parece-me que ambos têm coisas em comum.
Por isso pode ser interessante vê-los em proximidade. No meu caso, por uma razão ou por outra, ando a vê-los há mais de um mês. Seja em projeções ou apresentações, em que por vezes só vejo segmentos. Mas estou expectante para saber como as pessoas reagiram ao filme (Campo de Sangue) em sala. Também, porque noto que se passa qualquer coisa. É qualquer coisa que está abrigada nos filmes e que levanta uma questão de ordem teórica, digamos assim.

De que questão se trata?
Trata-se de um problema de maturidade. Algo que em Portugal chega muito tarde, porque se filma, em geral, muito pouco. Eu penso que a maturidade no cinema só pode surgir ao fim de um certo número de filmes. O que nem é exclusivo do cinema, mas da arte em geral. Claro que há excepções. E também acho que a vida de um cineasta, ou de um artista, é limitada. Pode-se filmar até muito tarde como no caso do Manoel de Oliveira, mas ele também começou a filmar com maior regularidade muito tarde. Setenta por cento da obra do Oliveira é feita já depois dos setenta anos. Ou seja, a maturidade tem que ver, claro com a idade, como no caso de qualquer pessoa, mas é também função da quantidade de filmes que se faz e da regularidade com que é possível fazê-los. No meu caso, que comecei a filmar aos dezanove anos, por razões fortuitas (mas que têm muito que ver com o 25 de Abril e com a explosão de liberdade desse contexto), sinto que já há algum tempo cheguei ao fim de um certo processo de “juventude” e que, desde 2009, ando há procura de um outro trajecto, cujo início pode ser visto como a concepção deste conjunto de filmes sobre “A Condição Humana”, de que Campo de Sangue é como uma espécie de segundo capítulo.

No seu caso, Vieirarpad, surge na sequência de um período em que fez vários documentários. Já a ficção sim, pois a última que fez foi quase há mais de dez anos. Será que esses diferentes tempos de que fala têm também a ver com isso?
Sim, mas neste processo de “reconstrução”, os documentários foram muito importantes. Aliás, há um documentário que foi mesmo estruturante – o documentário sobre Gonçalo Ribeiro Telles (A Vossa CasaPaisagens de Gonçalo Ribeiro Telles, 2016).

Sim, passou na televisão há uns dois anos, durante a pandemia…Sim, vai passando… Estreou no Indie em 2016, se a memória não me falha. O Gonçalo Ribeiro Telles trouxe uma ideia muito forte para esse documentário. Uma ideia que foi partilhando comigo. No início do documentário faço-lhe mesmo a pergunta: “se fizesse um documentário sobre a sua obra, o que faria?” Na verdade, essa foi também a pergunta que eu fiz à Vieira e ao Árpád, mesmo que não fosse fisicamente possível obter uma resposta. Seja como for, essa pergunta sempre esteve na origem dos vários projetos de documentário. Nalguns casos, tentei adivinhar um pouco a resposta pelo tipo de materiais que me chegavam, isto é, o arquivo, noutros tive a sorte de ter as pessoas comigo, como no caso do Rui Chafes (sobre quem fiz um filme, em 2015, para a Fundação Gulbenkian – Viagem aos Confins de um Sítio onde Nunca Estive), o José Saramago e o Gonçalo Ribeiro Telles. E a esta tal pergunta, Ribeiro Telles respondeu (e isso está no filme, logo no princípio do filme): “faria só paisagens, uma atrás da outra”.

Vieirarpad (Zulfilmes)

Ainda assim, não deixa de existir uma ligação evidente entre o seu documentário, um filme sobre arte, e a ficção que agora mostra, a assumir um tom levemente policial…

Sim, sim. Ambos os filmes vão dando sustento sistemático a uma ideia fundamental, que é essa ideia da passagem. Essa ideia essencial foi-me transmitida pelo Gonçalo Ribeiro Telles, sendo uma ideia verdadeiramente estruturante da sua concepção de “arquitectura da paisagem”… e que também vai sendo estruturante para mim, enquanto concepção de cinema… do cinema como canalização dos sentimentos e das emoções.

Ideia da passagem?
Sim. É uma ideia que se tornou fundamental. E sinto que nunca mais a irei abandonar. É um ponto a que cheguei conduzido por ele (Ribeiro Telles), também porque os filmes são, para mim, formas de aprender (para o espectador, que os vê, mas também para quem os faz). Filmar é, no fundo, conhecer. Um filme é uma passagem de conhecimento, de mim para os outros e dos outros para mim. Sinto-me apenas como um mediador entre o real e o espectador. Um filme é simplesmente a coisa como eu a conheço no momento em que a filmo. Isso para dizer que tanto o Vieirarpad como o Campo de Sangue são filmes marcados, não de uma forma racional, mas instintiva, pela necessidade deste fluxo, destas passagens. No caso do Vieirarpad, por exemplo, esteve sempre presente a ideia de que, no filme, o espectador é convidado a fazer parte daquele mundo. E a responsabilidade que eu tenho é de o conduzir para dentro dele. Com alguma racionalidade, claro, embora não seja uma exploração completamente racional. Não há uma voz off que explica tudo, por exemplo. Muito do que vemos, vemo-lo de uma forma táctil. Vem da pintura, mas também vem do processo de montagem que o filme deixa ver e que a pintura vai construindo em associação com muitas outras coisas. Por isso, digo que, neste processo de transmutações e fusões, filmo a paisagem como se fosse ela fosse uma pintura e, inversamente, a pintura como se ela fosse paisagem. E esta é a ideia que governa o filme, uma ideia de fusão entre tudo que faz parte da vida deles ambos, elemento de resto presente no próprio título do filme que indica essa fusão entre eles os dois.

Como sucede com as cartas que parecem estar a dar-nos pistas para o futuro. Que nos guiam, de certa forma. 
Sim, e também do José Álvaro [Ma Femme Chamada Bicho, de José Álvaro de Morais, de 1987]: um filme, cujo resultado tanto a Vieira como o Árpád, acabam por contaminar criativamente.

No sentido em que se vão convidando ao desenrolar do próprio filme…

Sim. Mas esta ideia de contaminação é uma ideia importante. E é um elemento que entrou também em Campo de Sangue. Não tanto no projeto do filme, mas sobretudo na montagem. No sentido, em que a montagem do filme foi uma experiência de abertura. De abertura e de forma de poder passar através das coisas e entre elas. O espectador deve deixar-se ir.

A mim pareceu-me que este é um filme que o espectador de hoje se pode surpreender, pois não está preparado para os códigos narrativos habituais. Concorda?
Eu fico espantado, apesar de tudo, porque acho que temos uma predisposição em relação ao espectador, baseada na ideia de que ele tem que compreender tudo e de quem tem que se lhe explicar tudo. Eu não tenho tanta certeza que as pessoas vão ao cinema vão dar vazão a uma paixão hermenêutica, de exercitarem a sua capacidade de compreensão. As pessoas vão ao cinema para serem arrastadas para dentro de uma coisa estranha que mora no centro dessa noite artificial que é uma sessão de cinema. O que eu fiz, na verdade, foi desamarrar o guião das suas armaduras estruturais – como o Luís Mário Lopes tinha desamarrado o argumento da estrutura do romance – e procurar que o filme se ancorasse mais nas personagens e nas energias que elas transportam, na sua forma de viver e sentir o mundo.

De que forma sentiu que deveria abordar o romance da Dulce Maria Cardoso?
O romance Campo de Sangue é centrado em personagens. Embora nós nunca saibamos completamente quem elas são. Sabemos o que elas fazem, a ação que têm, as palavras que dizem. Daí a ação ser tão importante porque vai criando esse rasto. Embora nunca se chegue a saber bem quem as pessoas são. Sabe-se o que fizeram e que essa ação tem na sua origem uma certa identidade, mas a identidade de cada uma delas não é o que está em causa.  O que está em causa é o processo, o dramatismo desse processo nascido de palavras e acções. O espectador deseja transformar-se numa pessoa diferente durante a sessão de cinema, viver e sentir o que não vive e sente na “normalidade” do quotidiano. Como se fosse processado por uma espécie de turbina, que é aquilo que filmes é suposto fazerem…

Nesse sentido, ao ler o romance como definiu o cinema que queria mostrar? Pois senti que o filme aflora, embora de forma muito ténue, vários géneros cinematográficos, sem nunca perder a sua linha. Um pouco como o Fritz Lang. Isso faz algum sentido?
O mais importante é o filme. O filme que se vai fazendo. E o filme segue o seu caminho, que é sempre um caminho forte e, de alguma forma, autónomo. Por exemplo, o crime do filme é inesperado e não tem sentido. Ou seja, a pessoa que é dito no princípio do filme ter sido morta não é, na verdade, uma personagem do filme, no sentido literal. Quer dizer, o que interessa é mesmo o crime e não a pessoa. Isso liga-se com aquilo que estava a dizer há pouco, que o cinema está, para mim, a perder um pouco essa dimensão antiga de preocupação de tudo explicar. De contar uma história à maneira de um livro. Ir procurando agora vias sensoriais. Também me parece que o livro Campo de Sangue e a escrita da Dulce Maria Cardoso operam no mesmo sentido.

Mas em que sentido?

No sentido de procurar um mundo que eu diria ser, talvez, um pouco ‘fauvista’. As formas estão lá, mas sem a definição, o contorno, que antigamente teriam. O Ele do filme conduz as coisas à sua maneira, marcadas por uma certa subjectividade… e instabilidade. O único momento de tranquilidade do filme é mesmo o final. No final é dado ao espectador a possibilidade de adquirir um ponto de vista. Mas eu acho que o filme termina mesmo no “fim do final”, com aquilo que acontece – que não interessa agora comentar – e que ainda faz parte dessa mancha de sensorialidade, de imprevisto, de desordem que está para lá daquilo que é simplesmente descritivo e expectável.

João Mário Grilo: “O Carloto Cotta tem qualquer coisa do James Dean”

E para esse tipo de desordem, sentiu que o Carloto Cotta foi uma escolha imediata?
Não foi uma escolha imediata. Já não lembro bem como aconteceu. Mas eu tinha muito medo desta personagem. E acho que uma escolha errada poderia originar algo terrível na rodagem e no filme. Portanto tivemos algumas conversas sobre o guião e ele leu o livro. Até que era evidente que havia ali material muito interessante (no actor, mas também na pessoa) e que seria possível, entre mim e ele, acertar uma certa direcção. Obviamente que, por causa disso, uma grande parte do filme é muito tributário desse trabalho de aprofundamento – até sobre ele próprio – que ele fez. O filme estava, aliás, em rodagem, aquando da estreia de Joker, que foi um filme que lhe deu algumas ideias.

Considero o Carloto um dos actores portugueses mais versáteis, não acha? 
Eu acho que o Carloto tem qualquer coisa do James Dean. Não sei se a palavra versatilidade é a mais adequada.

Sim, talvez tenha uma fragilidade que nos remete para o Dean. 

Sim, tem coisas que o (Nicholas) Ray encontrou no James Dean (Fúria de Viver, 1955), por exemplo. É uma fotogenia muito forte, mas a verdadeira fotogenia dele não está só no aspecto, está numa espécie de radiação interior que está para além do aspecto. E é preciso ter um pouco de coragem para a procurar porque podem encontrar-se precipícios pelo caminho. De alguma maneira, essa personagem é um pouco psicanalítica. Daí eu dizer que o filme foi a oportunidade de ele fazer também um trabalho sobre ele…

É interessante também a analogia que o João Mário faz com o Frankenstein. Com a ideia de monstro.
Claro. Esse é um momento importante. Talvez não tenha uma importância narrativa muito grande no filme, mas é evidente que, para o espectador, isso marca a personagem… o facto de “Ele” estar a ver a criatura de Frankenstein. Eu vejo-o a ver e isso é mais do que uma simples dimensão que se dá. Chegou até a brincar-se na rodagem chamando-lhe “Boris-Carloto”. O que é outra “fusão”.

Boris-Carloto?! Essa não esperava.
Isso não está no filme, mas na verdade ele interagia com o monstro Karloff. Depois achámos na montagem que isso não era preciso até por ser demasiado. Mas é importante o diálogo que ele tem a seguir com a Dulce que é marcado por essa dimensão da personagem que ele acaba de descobrir… e pelas semelhanças entre a escritora e Dr. Frankenstein, o criador do “monstro”, que o Ele também diz ser. E esse diálogo marca o destino da Dulce. É bonito o plano em que ele vai por detrás dela e lhe diz que ela não tem que ter medo dele.

Ao longo deste tempo, destes dois filmes, salvo alguma licença sabática, manteve também o seu percurso académico. O que pergunto é que de que forma existe aí algum tipo de comunicação, entre o professor e o cineasta. E de que forma o cineasta contempla também o professor.
Eu sempre olhei para a universidade como uma forma de me refugiar do cinema e, de certa maneira, o cinema como uma forma de me refugiar da universidade.

O refúgio é uma expressão interessante.
Sim. São atmosferas bastante absorventes. Cada uma do seu jeito. Acontece que, na minha vida, a universidade sempre foi muito mais refúgio que o cinema. O que não é o que se passa agora. Ou seja, a universidade transformou-se, por várias razões, também pela minha forma de olhar para ela, muito do que o cinema era para mim na altura em que comecei a fazê-lo. Onde eu sentia que a universidade era uma paisagem muito mais tranquila e o cinema muito mais efervescente.

Será o cinema então para si um refúgio, no sentido de maior produtividade?

Sim, sim. A universidade permitia-me ganhar uma espécie de recuo. Permitia-me até pensar na prática do cinema com uma certa distância, que eu diria, securizante. Isso acabou. Nesse sentido, para mim, o cinema é o lugar de exercício de uma poética que eu continuo a tentar instalar nas coisas que faço na minha vida. Eu agora quero é filmar. Encontro no cinema uma espécie de dinâmica que identifica essa poética que eu encontrava na Universidade, quando comecei a ensinar.

Sente que de uma certa forma essa poética se perdeu também em grande parte do cinema que vemos hoje em dia? 
Eu acredito que daqui a algum tempo vamos voltar ao cinema com ecrãs grandes, com uma imagem em que realmente se justifica ir à sala de cinema. Mas hoje pouco disso se está a passar. Acho que o mercado do cinema terá de voltar a pensar as suas variáveis. E atrair pessoas que neste momento não encontram razão para lá ir. E que vão lá cada vez menos.

O seu cinema vai claramente num sentido oposto.
Isto para dizer que o filme Campo de Sangue é um filme à procura de formas de superar este dilema. No sentido de acreditar que o espectador é capaz de coisas que nós não lhe achamos possíveis. Ou seja, capaz de visitar e habitar um mundo sem seguranças narrativas. O cinema é uma arte onde a narrativa tropeça na fenomenologia. Isso é muito a dimensão que eu descobri neste filme. Nomeadamente com os atores, num filme onde eu nunca precisei tando deles. Acreditando que isso depois pode conduzir as emoções do espectador de uma forma coerente. Repito o que já disse: a coerência do filme não é narrativa, mas sensorial. Porque eu acredito que a razão puxa para um lado e o espírito puxa para o outro e que é preciso escolher o balanço que se dá a essa antinomia.

Sim, o filme provoca-nos de uma forma que não estava à espera.
Também acho que o filme é marcado pela ideia do movimento. Por uma necessidade elementar de pôr as coisas e as pessoas em movimento. E depois deixar que elas sigam o seu caminho. Sendo que ninguém controla esse caminho. Na montagem, a ideia de pensar que o filme tinha que se contar sozinho foi total. Isto porque começámos a perceber que havia uma força dentro do filme que apontava para ligações muito surpreendentes e que tinham um movimento próprio.

Só para terminar. Existem já ideias a navegar na sua cabeça à procura de novos filmes?
Tive um convite fazer um documentário sobre Aurélia de Sousa, uma pintora do Porto, mas nascida no Chile, e que, para além de toda uma obra muito surpreendente, tem um auto-retrato muito famoso, um dos melhores quadros de toda a pintura portuguesa e um dos melhores auto-retratos da história da arte.

Aurélia de Sousa – Auto-retrato (http://www.ci.uc.pt/artes/6spp/frames.html)

Passam, agora, 100 anos sobre a morte dela. É um projeto que me diz muito, sobretudo também por ter vivido toda a minha infância e grande parte da adolescência numa casa sobretudo habitada por mulheres. Como ela. A Aurélia pintou intensamente o ambiente em que viveu. Ora, eu reconheço na pintura dela uma visão que me remete, se calhar, um pouco para o meu primeiro filme (Maria, 1978), que era uma longa feita em Super 8, sobre a minha família. Para além disso, tenho o desenho de uma ficção, baseada em Sinais de Fogo, de Jorge de Sena, um dos romances mais importantes no século XX. Não sei ainda muito bem o que é que vai ser, mas terá que ver com a zona onde eu nasci: o Oeste de Portugal. De certa maneira, sou um habitante dos ‘sinais de fogo’ e tenho vontade de estar essa paisagem, que tem a ver com as minhas origens. Não haverá muita gente capaz de filmar isso, com a autenticidade que o Sena descreve no livro e que é “de experiência feita”. Talvez o César (João César Monteiro), que também era da Figueira.

Portanto, de novo, um documentário e uma ficção. 
Mas, Paulo, eu passo, do documentário para a ficção na boa. Posso passar dez anos sem fazer ficção. Ou dez anos sem fazer documentário. Para mim, o Vieirarpad é um filme de ficção. Eu acho. Não é um documentário. O Gonçalo Ribeiro Telles está filmado também como uma personagem. Sou um tipo que tenta aproveitar o melhor daquilo que faço e filmo. Todos os documentários deixaram-me uma aprendizagem muito grande.

Que tipo de cinema lhe apetece fazer? 

Agora agrada-me cada vez mais um híbrido entre a instalação e o cinema – por exemplo, o cinema do Apichatpong (Weerasethakul) – , no sentido de se revelar como uma experiência mais transfiguradora. Nesse caso, a pintura ensina muito. Também como espectadores.

(texto originalmente publicado em Comunidade de Cultura e Arte)

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