Sexta-feira, Abril 19, 2024
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Cannes e o regresso à realidade: é a vida em directo  

A 75ª edição do Festival de Cannes decorre de 17 a 28 de Maio

Em Truman Show, o filme de Peter Weir de 1998, Truman Burbank, a personagem interpretada por Jim Carrey, apercebia-se a certa altura que a sua vida não passava de uma fabricação, de um mundo alternativo, recriado por um produtor que se apropriava dessa realidade para alimentar um reality show. No momento em que Truman (true-man, homem verdadeiro) duvida do fundamento da sua própria realidade, decide procurar os limites desse mundo artificial, acercando-se do limiar entre a ‘sua’ e a ‘verdadeira’ realidade.

Ora, é precisamente a imagem desse momento a escolhida para celebrar os 75 anos do Festival de Cannes. Talvez para nos sugerir que os tempos inacreditáveis vividos nos últimos dois anos – desde a epidemia viral que levou ao cancelamento do festival em 2020, à guerra na Europa e à consequente crise humanitária – podem ser comparadas à ilusão vivida por Truman Burbank. Talvez para assinalar que a realidade (ou escape) que desejamos poderá está lá fora, no topo dessas escadas (no cinema?). Ou seja, seguindo as famosas marches, imortalizadas na famosa introdução musical de degraus que ascendem às estrelas, musicada pelo tema de Camille Saint-Saëns que antecede todas as sessões desde 1990. Pelo menos, é isso que esperamos, uma ‘realidade alternativa’ capaz de nos devolver alguma da humanidade perdida nestes tempos que correm desalmados. E descobrir algo sobre a nossa própria existência.

Só que, ao mesmo tempo, essa realidade que se procura exorcizar parece conter, ela própria, alguma carga viral que acaba por lhe tolher uma boa parte do seu louvável significado. Desde logo, na infelicidade de escolha para filme de abertura a comédia de terror Z, de Michel Hazanavicius, algo que a ‘nossa’ realidade dificilmente deixará de associar essa letra à insígnia militar que as tropas russas inscrevem nos seus veículos como símbolo da invasão na Ucrânia.

Z, Michel Hazanavicius (Festival de Cannes)

Por certo, uma comparação que não terá estado na mente de Hazanavicius, o vencedor da Palma de Ouro, por O Artista, em 2011, um filme que justamente devolveu a Cannes essa sensação da pureza do cinema, sob a forma de um filme mudo. Até porque na base de Z está, como o próprio já explicou à revista Variety, a intenção de fazer comédia com aquilo que os franceses designam por ‘série Z’ (um equivalente à série B americana), ou, neste caso também, para designar zombies. Na verdade, o remake de um sangrento filme de terror japonês, One Cut of the Head, na tradução inglesa, realizado por Shin’ichirō Ueda, em que uma equipa de rodagem se esforça por fazer um filme de zombies num único take. Aparentemente, este ‘erro de casting’ será contornado (ou substituído) pelo uso do título internacional Final Cut nos materiais promocionais em Cannes e em todo o mundo. Já que, segundo informa o IU, essa leitura terá já sido usada em território russo, como que a presumir esse apoio do festival.

Essa uma medida tomada em função do protesto do Instituto Ucraniano, a entidade pública que representa a cultura ucraniana no mundo. E que não se fica apenas por esse exemplo. Aponta igualmente à escolha para a Seleção Oficial, portanto em concurso para a Palma de Ouro, do filme Tchaikovsky’s Wife, de Kirill Serebrennikov. Pela brevíssima descrição disponível, percebe-se a escolha dos programadores do festival. Em meados do século XIX, Tchaikovsky Wife aborda a forma como a mulher do compositor Pyotr Ilyich Tchaikovsky cede gradualmente à demência por não aceitar a “orientação não convencional” do marido. No caso, a alegada homossexualidade do compositor russo.

Tchaikovsky’s Wife, de Krill Serebrennikov (Festival de Cannes)

Apesar do encenador e realizador ser um assumido crítico de Putin, o Instituto aponta o facto do filme ter sido produzido pela Kinoprime, uma companhia fundada em 2019 pelo oligarca russo Roman Abramovich (que recentemente obteve também nacionalidade portuguesa), com um investimento de 100 milhões de dólares. De resto, a apresentação desta produtora privada decorreu, há três anos precisamente em Cannes, pelo CEO Anton Malyshev, o anterior gestor do Russian State Film Fund. Como forma de explicitar a orientação, o próprio Malyshev referiu até Kirill Serebrennikov como exemplo a seguir. Acrescente-se até que o realizador de Petrov’s Flu e Leto foi sentenciado em 2020 a uma pena de prisão domiciliária, só recentemente comutada permitindo que o cineasta pudesse sair da Rússia. Curiosamente, Kirill irá abrir, em Julho, o festival de teatro de Avignon, com a peça The Black Monk, de Tchékov.

Ultrapassadas esta reticências, que gradualmente serão digeridas pelo festival, talvez faça sentido recordar um filme que poderá muito bem ser um melhor contraponto para suscitar diversas leituras. Trata-se do documentário, exibido fora de competição, do ucraniano Sergei Loznitsa The Natural History of Destruction, inspirado na obra do alemão W.G. Sebald, uma vez mais recorrendo a imagens de arquivo e ilustrando a devastação trazida pelos bombardeamentos aliados nas cidades alemãs durante a 2ª Guerra Mundial e o efeito derrapante da memória na cultura germânica.

Leila’s Brothers (Festival de Cannes)

Como é habitual, ao concurso da Palma de Ouro regressam sempre grandes nomes, muitos deles cine-filhos do festival. Como é o caso dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne (este ano com Tori and Lokita), mas também James Gray (Armaggedon Time), Arnaud Desplechin (Frère et Soeur), Hirokazu Kore-eda (Broker) ou Ruben Ostlund (Triangle of Sadness). Sauda-se também a ascensão ao estatuto de Cannes do iraniano Saeed Roustaiy (Leila’s Brothers). E sem sair do contexto de espelho entre realidade e o seu reflexo que Baz Luhrmann regressa a Cannes, depois de Moulin Rouge! (2001) e O Grande Gatsby (2013), num regresso ao musical para homenagear Elvis Presley. Ethan Cohen centra-se também no musical no documentário sobre Jerry Lee Lewis, em Trouble in Mind.

 

Veja aqui a lista dos vários filmes das diferentes secções

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