Terça-feira, Março 19, 2024
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Flee: como apaziguar as sombras do passado?

Sim, é um dos grandes filmes do ano. Lentamente, a animação documental do realizador franco-dinamarquês Jonas Poher Rasmussen tem vindo a granjear a atenção devida, pelo menos desde que foi exibido em Sundance, em Janeiro passado. E têm sido os prémios a dar conta do seu valor. Como a recente confirmação outorgada pelos Prémios do Cinema Europeu, distinguindo a melhor animação e o melhor documentário, dando justa medida à jornada de cinco anos de fuga de um refugiado afegão até ter um lugar a que pudesse chamar ‘casa’.

Em si, a história tem igualmente muito do realizador que conheceu Amin na Dinamarca quando tinha apenas 15 anos, e que se prolongou depois numa vida em comum. Talvez tenha começado pela curiosidade de conhecer e evocar o trauma desse passado, desde a fuga de Kabul, a experiência traumática na Rússia, depois no barco, no fundo, uma partilha de algo que será comum a tantos refugiados, embora trabalhada também pela proximidade de uma vida a dois. Esse foi o outro trauma. Mas prolongado pela vontade de Amin superar o seu desejo masculino. Sobretudo após perceber, em meados dos anos 80, que não tinha apenas uma admiração física pelo poster, os filmes ou a pose de Jean-Claude Van Damme…

Há então esse lado terapêutico, tantas vezes dado pela imagem de Amin deitado numa almofada, em atitude confessional, que ajuda a acompanhar o pesadelo (mas também o sonho) das várias personagens que foi conhecendo ao longo dos anos de fuga. A vergonha também o levou a esconder a cara e optar antes pelo registo animado, cuja opção estética, naturalmente, reconhece uma proximidade a um outro trauma, no caso, A Valsa com Bashir, de Ari Colman, de 2008, e até, em certa medida, a Persepolis, de Marjane Satrapi, do ano anterior.

Não deixa de ser curiosa a forma como Rasmussen condensa a realidade na animação, mesmo quando nos oferece pequenos excertos documentais, por vezes com uma proximidade extrema, ou quando opta pela opacidade de momentos mais traumáticos. Foi esta a forma (só aparentemente) simples de lidar com este trauma do passado, embora disposta a assumir todas as suas vertentes, que acaba por se revelar tão satisfatória. Não só pela honestidade do registo sobrevivência e aceitação, mas também, ou até sobretudo, pelo sentimento que Rasmussen demonstra a Amin através deste filme maravilhoso.

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