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Serpentário: a memória da mãe e o marinar do tempo

Em Portugal, Serpentário poderá ser visto em várias salas. Em Lisboa e Porto, com duas sessões especiais, na presença de Carlos Conceição: 25 de Novembro Cinema City Alvalade e 29 de Novembro no Cinema Trindade.

Finalmente nas salas, Serpentário, a primeira longa de Carlos Conceição, movida por um programa cauteloso (o possível) de exibição nacional articulado pela Mirabilis e Agência. Um projecto que surge até depois da média metragem O Fio de Baba Escarlate, debutado precisamente um ano. É esta a conclusão do longo percurso iniciado em Fevereiro de 2019, quando foi exibido na secção Fórum na 69ª edição de uma Berlinale pré-covid. Passaria no mesmo ano no DocLisboa. Apesar do filme estar, nessa altura, já pronto há já quatro anos “pelo menos, desde o ano em que estreou Boa Noite Cinderela (em 2014), conforme nos confidenciou, na altura, Carlos Conceição na nossa conversa em Berlim. São estas as contingências do cinema voluntarioso que se faz com pouco dinheiro (apenas com três pessoas), mas com muita imaginação.

Foi assim que Carlos Conceição estendeu a sua dinâmica de curtas metragens ao universo do grande formato. Com João Arrais (O Soldado Milhões e  Coelho Mau, de Conceição) a assumir o corpo do cineasta nesta procura da alma da mãe numa paisagem pós-apocalíptica em que se fixa a sua procura de um acto de criação. Os créditos iniciais revelam que Conceição veio para Lisboa ainda jovem, apesar da mãe ter ficado em Angola, com os pais, onde nascera. Decidira ficar, tal como a seguir à independência. Aliás, é por isso, que “a palavra ‘retornado’ não lhe faz sentido, “porque estas pessoas não eram portuguesas, muitas delas nunca tinham vindo a Portugal”. E, de certa forma, o ADN de Conceição (e da sua mãe). Aliás, veja-se, no final, as fotos dos avós e bisavós, oriundos da Andaluzia, que vieram de Avelar para África em 1905, primeiro para o Namibe e, depois, à procura de um clima melhor, para o Lobango (ex-Sá da Bandeira), onde Carlos Conceição viria a nascer. Explica ainda a legenda inicial que queria adotar um pássaro que viveria durante 150 anos, mas apenas se o filho tratasse dele quando ela morresse.

Porque é a procura da memória da mãe que se trata. Depois da emancipação do adolescente na Lisboa do início dos anos 90, criando as suas raízes e referências culturais, e a separação da que mãe decide regressar após o seu doutoramento em Psicologia e Psicologia Clínica, na Universidade do Minho. Era o fascínio de “poder ir ao cinema, poder comprar discos novos”, sem ter de esperar vários meses pela a volta do correio.

É esta a sina da personagem que desembarca nas planícies de África, e vagueia como um fantasma por esse território onde apenas encontramos alguns nativos e a voz da mãe (Isabel Abreu) implorando que a venha procurar. Aliás, o conceito se serpentário deixa pistas suficientes para explorar. Desde o viveiros de serpentes até à ave de rapina nocturna, embora nos pareça mais próximo da mitológica constelação astrológica que encara essa figura como deus da Medicina. São pistas a seguir nesta viagem intemporal, entre o passado e o futuro, trabalhada até com algum humor, em que o texto em off do próprio realizador recorda os feitos dos navegantes portugueses que, como ele diz, pontuavam a costa com aqueles ‘calhaus’ envergando a nossa cruz emblemática. Invoca ainda astronautas em naves retro, desertos e cidades, cenários de eventuais super-heróis ou mesmo westerns credíveis, ainda que sempre atravessados por este rapaz de ténis Adidas e uma t-shirt com uma caveira estampada. Talvez em Serpentário subsista ainda o corpo de uma curta metragem, apesar deste cinema feito de encantamento e sonho visar algo bem além desse formato.

Por aqui se estabelece, de uma forma quase inevitável, uma proximidade grande com A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos, o filme sensação deste ano (representando Portugal nos candidatos às nomeações depara o Óscar de Melhor Filme Internacional). E por diversas ordens de razões. Apesar de Metamorfose ser posterior – foi igualmente exibido em Berlim (na secção Encontros), no ano seguinte. Não só pelo gesto de evocação da memória familiar (as Mães), algures prolongada numa distância geográfica e evocada por um lado confessional, em off, ainda que com recursos estéticos e opções de cinema diversas.

João Arrais cumpre esse programa de errância pelo deserto africano, como um misto de Harry Dean Stanton em Paris Texas, de Wenders, e da crise existencial de Monica Vitti em Deserto Vermelho, de Antonioni, e com o tal “flirt com géneros”, que referimos na nota que escrevemos em Berlim, “seja a gesta aventureira lusitana ao longo da costa, mas também uma ligação à ficção científica retro ou mesmo western”. Algo que Conceição corrobora, comparando a colonização portuguesa de África com alguns filmes do faroeste, desde John Ford ao western spaghetti. Bem visto.

Este é, portanto, um regresso à própria origem de Carlos Conceição. Daí se explica essa deambulação, onde não está alheia uma dimensão futurista (de ficção científica mesmo!) que, inevitavelmente, tece um diálogo interessantíssimo com Memoria, de Apichatpong Weerasethakul, pela forma como aborda dimensões sensoriais que frequentemente nos escapam. Ele que defende que “tudo o que está no filme é verdade. Mesmo que não exista registo de certas memórias, da minha avó, por exemplo, há uma idealização das coisas que ela me contava. Sendo que para mim essas narrativas revestem-se sempre de uma formalidade cinematográfica.”

(texto adaptado do artigo escrito em Fevereiro 2019, em Berlim)

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