Sexta-feira, Abril 26, 2024
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 Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar: a febre do ouro azul

No novo filme de Marcelo Gomes vemos como o trabalho escravo familiar se torna dominante na província de Toritama, no estado de Pernambuco. Trabalha-se o ano inteiro nas fábricas de calças de ganga para gozar uma semana de férias. Nessa altura, vende-se o frigorífico e a televisão para passar o Carnaval na praia. É disso que nos fala Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar, o documentário de Marcelo Gomes (exibido na Berlinale de 2019) adaptando de forma mansa o refrão de João Gilberto à cultura do capitalismo selvagem abençoado por estes novos escravos.

Quando o cineasta Marcelo Gomes regressou à região do Agreste, no nordeste do Brasil, entre a zona da mata e o sertão, ao lugar da sua “memória afetiva”, descobriu esta comunidade que lhe entregou um filme precioso. Tão precioso como os jeans que são agora considerados o ‘ouro azul’ e desejados por agregados inteiros que dedicam o seu tempo à produção de mais um bolso, mas um efeito, mas uma peça de ganga. É assim, quando o muito pouco faz toda a diferença do quase nada. Porque é esse o único recurso para muitos cidadãos de Toritama, mais conhecida como ‘a capital do jeans’.

Por motivos profissionais, Marcelo Gomes foi forçado a passar por aquela região do Agreste, de onde veio parte da sua família e onde passou parte da sua infância. Ao ver os outdoors otimistas à beira da estrada ficou impressionado. Mais ainda ao saber que as pessoas vendiam os seus eletrodomésticos para poderem ir a banhos durante o Carnaval. “O filme surgiu da união desses dois desejos”, confessou-nos na entrevista realizada em Berlim. “O processo de industrialização se tornou esdrúxulo e muitos caíram nessa armadilha do enriquecimento rápido em função da auto escravidão. O neoliberalismo foi muito eficiente nesse sentido, ele realmente conseguiu vender muito bem suas verdades, até porque em nenhuma das conversas que fomos tendo as pessoas se enxergavam como vítimas”.

Ao longo do filme, a voz rouca de Marcelo vai narrando em ‘off’ imagens que se confrontam com as do passado. “Na minha memória, Toritama era uma cidade que tinha outra velocidade”, refere a certa altura no filme. Mesmo quando deixa os seus habitantes se referirem, não sem algum orgulho, ao “ouro azul”, esquecendo as quinze horas de trabalho, a costurar, dobrar e meter em camiões os tais jeans azuis. Sempre a pensar no valor extra de cara hora de trabalho. Com um sorrido. Até porque existe essa miragem ao fundo de uma semana de férias na praia.

Hoje é a ideia do liberalismo primário que vinga, substituindo as bibliotecas, teatros e orquestras, que ainda existiam nos anos 80, por esta mistura entre a casa e o local de trabalho. “É essa mudança na paisagem humana que mais impressiona”, lamenta-se. “Talvez vendo uma situação tão radical como a que acontece em Toritama, a gente possa refletir sobre a nossa própria relação com o trabalho, o consumo e o que fazemos com o tempo nas nossas vidas”, refere, mesmo quando se mostre algo descrente no futuro.

Entretanto, Marcelo Gomes concluiu já o seu próximo projecto, Paloma. Uma vez mais, em co-produção com a portuguesa Ukbar, de Pandora da Cunha Telles, depois de Joaquim. Trata-se da história de uma agricultora do sertão de Pernambuco. Ela é Paloma, uma mulher transexual. Até que um dia tem uma epifania e decide casar na Igreja… Promete.

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