Sábado, Abril 27, 2024
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Diários de Otsoga: O momento em que o cinema procura o seu espírito

A colaboração entre Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro que gerou Diários de Otsoga assinala, seguramente, um dos filmes mais insólitos e marcantes deste histórico (e pandémico) Cannes 2021, neste caso apresentado na Quinzena dos Realizadores, a secção que parece ajustar-se melhor a um cinema que desafia regras.

Aliás, tem sido esta secção paralela a que mais se adequa ao realizador português. Foi assim com o apoteótico de mais de seis horas, As Mil e Uma Noites (inviabilizado para Seleção Oficial), dividido em três filmes, mas também, ou sobretudo, Aquele Querido Mês de Agosto, afinal de contas o filme que, em 2008, colocou Gomes no radar do cinema inconformado (já depois de A Cara que Mereces e de várias curtas). Aliás, este é um projeto entre vários que Miguel Gomes desenvolve (entre eles o já anunciado Selvajaria, que deverá apresentado no festival de Locarno, que decorre entre 4 e 14 de Agosto).

Valeu a revisão da sua carreira, para sintonizar com o ritmo retrospectivo do tempo deste filme, já que se trata de um projeto realizado em plena pandemia (a rodagem ocorreu entre meados de Agosto e Setembro do ano passado). Mas também por sugerir uma fruição próxima com o fundamento e ato de criação do cinema, algo tão grato ao cineasta português que decidiu trocar a análise crítica pela análise dentro da realidade do próprio meio.

A única premissa é acompanhar a equipa de rodagem (desse mesmo filme), apenas com a intenção de rodar as cenas num inverso cronológico. O que significa também uma ausência de guião. Um pouco como no Memento, de Christopher Nolan, se quisermos. Embora essa seja sempre uma referência falhada a propósito deste filme. Um outro filme talvez possa ser associado, será O Sonho da Luz, o Sol do Marmeleiro, do espanhol Victor Erice, quanto mais não seja pela associação das tonalidades de dois marmelos (um mais e outro menos maduro) que Miguel Gomes vai observando, como que a sublinhar essa ideia de tempo.

Nesses propósitos encontramos o trio Crista Alfaiate, Carloto Cota e João Monteiro à procura de um filme. Eles e a equipa. Por isso, este filme tem uma ressonância tão orgânica como Aquele Querido Mês de Agosto. Como que a confirmar a necessidade do cinema, e dos seus processos, antes de mais. E não há muito mais a dizer, a não ser que se trata de um filme que pesquisa essa doçura especial do verão (a certa altura Maureen sugere a inspiração de um livro do Pavese) e esse dolce fare niente tão cinematográfico (Jorge Silva Melo adaptou um outro livro do Pavese, para o seu Agosto). Essa pode ser a ideia do cinema. O resto passa pelo trabalho, pelas discussões. Nem que seja o argumento do técnico de som Vasco Pimental sobre os itens do pequeno-almoço. O resto é conversa.

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