Terça-feira, Março 19, 2024
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Azeméis Film Festival – Pelo cinema reivindicamos a nossa identidade

Drama de guerra Eternal Winter do húngaro Attila Szász vence a primeira edição do Azeméis Film Festival. O documentário ‘híbrido’ tailandês, Santikhiri Sonata, de Thunska Pansittivorakul, arrecada menção honrosa.

Foi um festival curto, talvez o mais curto a que tivemos ocasião de participar. Apenas com a exibição de cinco filmes a concurso, em três dias. Ainda assim, um certame bastante intenso. De alguma forma alavancado pela qualidade dos filmes a concurso neste Festival dos Festivais – com os premiados dos mais relevantes festivais nacionais -, mas também pela vontade indómita de fundar um festival de cinema em plena pandemia. Uma coisa é certa, o vírus do cinema parece ter ficado devidamente inoculado em Oliveira de Azeméis.

Uma questão de teimosia, pode dizer-se, terá presidido à intenção de criar um novo festival de cinema, mesmo num panorama demasiado negativo, dominado pela pandemia. Teimosia essa que deixa a sua marca, desde logo justificada pelo ADN do Cine Clube de Oliveira de Azeméis capaz de motivar esta “reintrodução do cinema no concelho”, como salientou o Presidente da Câmara local, Dr. Joaquim Jorge, na nota de abertura no catálogo do Azeméis Film Festival, a decorrer na sala O Cinema (Gemini) durante os dias 2, 3 e 4 de outubro. Um certame que recebe ainda a colaboração por parte do Cine Clube de Avanca, do produtor e exibidor António Costa Valente e da sua equipa.

Eternal Winter

Sim, um ‘best off’ dos festivais. Portanto, do palmares do IndieLisboa, LEFFest, DocLisboa, Avanca e Fantasporto. Mesmo sem estar ainda totalmente decidido se será um evento anual ou bi-anual (como referiu ao Insider a Dra. Ana de Jesus, vereadora da cultura), esta será uma oportunidade para divulgar algumas das melhores propostas cinematográficas que tiveram ligar no nosso país.

Poder-se-ia pensar que num festival apenas com uma mão-cheia de filmes não haveria muito a relatar. Não é bem assim. Até porque há algo que acaba por unir este grupinho de happy few. Algo que definimos como vontade de cimentar uma identidade – afinal de contas, a aparente motivação de um festival empenhado em solidificar raízes numa região a sofrer com seca de cinema, em particular o cinema alternativo ao circuito comercial.

Alfonso Palazón, Paulo Portugal, Rui Tendinha, Jorge Lestre e Leire Aurrekoetxea.

Juntámo-nos ao júri composto pelo professor de cinema Alfonso Palazón, a produtora basca Leire Aurrekoetxea, os portugueses, Jorge Lestre e Tiago Barbosa, ambos críticos de cinema da terra, além do crítico Rui Pedro Tendinha. Por aqui, fomos descobrindo os diversos indícios de uma procura de identidade.

Desde logo, a começar pelo ensaio quase mitológico sobre os nativos Guanches, das ilhas Canárias, em que as imagens de arquivo de De los nombres de las cabras, da dupla espanhola Silvia Navarro e Miguel C. Morales (vencedor do IndieLisboa, em 2019) refletem precisamente essa ligação à terra (neste caso, mesmo à rocha assumida como casa).

Algo que não está separado pela procura individual de Tommaso, de Abel Ferrara (vencedor do Grande Prémio do Júri LEFFest 2019), um projeto bicéfalo do cineasta novaiorquino e do ator americano, em que se reflete o passado (o cinema de violência, a espiritualidade e até a crucificação) numa fita rodada na própria casa de Ferrara, em que participa a sua própria família. Salvas as devidas diferenças, o projeto documental do portuense Luís Moya, Por detrás da moeda (prémio do público no Fantasporto, edição de 2019), vem impregnado de uma estética semelhante. Neste caso, uma opção de vida (ou fruto dos acasos da vida) ao dar justa expressão aos artistas de rua na cidade do Porto. Mesmo quando o registo de reportagem televisiva acaba por ser algo desviado pela extensão de algumas pontas narrativas que lhe retiram parte da sua unidade e força.

Tommaso

É incontornável o apelo identitário que resulta no poderoso Eternal Winter, uma robusta e sumptuosa produção húngara dirigida com afinco por Attila Szász, vencedora da edição 2019 do festival de Avanca, e justo premiado em Azeméis, que só surpreende pelo facto de ter sido ignorado pela exibição nacional. Aqui se revisita a história (bem menos conhecida) do sofrimento (e identidade!) do povo húngaro, separado por etnias e forçado a trabalhar nos gulags russos, em revanche ao inicial apoio dado pelo país às forças do Eixo. De certa forma, um filme que dificilmente abdica de ser um reverso inevitável ao pungente O Filho de Saúl, de Lázsló Nemes, de 2015, embora com todo o mérito e o compreensível sinal de esperança.

Santikhiri Sonata

Por fim, a vida, a história e a riqueza cinematográfica de Santikhiri Sonata conferem ao cinema tailandês uma nova e inesperada força. O vencedor da última edição do Doclisboa (e digna menção honrosa em Azeméis), é um prolongamento da carreira audaciosa do cineasta thai vincadamente indie Thunska Pansittivorakul, personalidade de um cinema “híbrido”, como é assumido na descrição do seu mais recente trabalho, empenhado em apanhar os cacos da história do seu próprio país, dizimado pela opressão, corrupção, violência e exploração. Não admira, por isso, que esta ‘sonata’ tente juntar elementos tão díspares como esta herança infernal, a imagens de puro impressionismo, ou porno explícito (algo que vem já dos seus filmes anteriores), algo que se liga ao lado mais explícito (pornográfico mesmo!) da violência tão explícita no seu país (e não só, como nos revela O Acto de Matar, de Oppenheimer). No entanto, Santikhiri Sonata opta por não se levar a sério, desafiando-nos talvez a distinguir entre a diversão do estilo karaoke logo no início do filme, o elemento de rodagem dentro do filme, talvez para nos dizer que a ficção também passa por ali, a par da componente museológica, procurando a identidade nas entranhas da sua própria história feita de guerrilhas de fronteira, e o sexo. Puro e duro, tal como todo o filme.

Hálito Azul

O Azeméis Film Festival exibiu ainda, extra-concurso, Hálito Azul, de Rodrigo Areias, premiado no último CineEco. Além do elemento histórico conferido pelas curtas de cineastas da terra, Manuel Matos Barbosa, António Matias e Manuel Palma Dias, que durante os anos 60 e 70 alimentaram o Cine Clube de Oliveira de Azeméis, e teimaram em fazer cinema com a película (8 e 16mm) e os meios disponíveis. É que foi aqui que tudo começou.

 

 

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