Terça-feira, Março 19, 2024
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Laurel Canyon e Gimme Shelter: Aqueles queridos anos 60

Os documentários musicais Laurel Canyon e Gimme Shelter são dois dos pontos fortes de IndieLisboa 17, solidificando uma programação fortíssima que nos permite uma inesperada ponte entre o momento revolucionário de há 50 anos atrás e até com o nosso ‘novo’ presente. De um lado, temos a evocação musical do nascimento do folk rock eletrificado que marcaria essa década (entre 1965-75), do outro o cinema verité dos irmãos Maysles no relato do concerto trágico dos Rolling Stones em Altamont, uma espécie de ressaca-Woodstock. Ou seja, de certa forma, a ascensão e o declínio dessa idade de ouro do rock’n’roll, mas também do movimento hippie.

Em cerca de duas horas e meia viajamos no tempo até à sinuosa estrada de Laurel Canyon para evocar os sons que definiriam e marcaram para sempre os anos 60, nos Estados Unidos, ao mesmo tempo geradores das profundas transformações sociais e políticas que criaram a possibilidade de um sonho ideal e uma evasão psicadélica que superou o conformismo do bem-comportado idealismo americano de plástico e conservador.

Tanto Laurel como Shelter poderão fornecer algumas luzes para questionar e até compreender melhor esta época absolutamente decisiva que vivemos meios século depois. De resto, uma efeméride devidamente integrada na programação da edição do Indie desde ano, com a recuperação dos 50 anos da edição experimental do Fórum, exibida este ano no festival de Berlim, com um conjunto muito significativo de documentos de profunda transformação social, a que a retrospetiva do senegalês Ousmane Sembène, considerado o pai do cinema africano, confere uma solidez inabalável.

Mas voltemos a Laurel Canyon, de Alison Ellwood, já depois de diversos projetos musicais (A História dos Eagles ou Go-Go’s, por exemplo), e ao local onde aconteceu esta pequena grande revolução  social geradora de uma das mais fascinantes gerações de músicos americanos. Seguramente, o oposto do que vivemos hoje, ou seja, uma comunhão de ideias, sons numa política de porta aberta e profunda aproximação social. Foi no caminho bucólico e sinuoso de Laurel Canyon, que liga a agitação do Sunset Boulevard aos Hollywood Hills, que se escutaram pela primeira vez os riffs da Gibson Rickenbacker de Roger McGuinn, dos Byrds. Basicamente, uma banda que pretendida emular os Beatles, não só na atitude boy band mas também na intenção de eletrificar a música, neste caso o folk. Assim nasceu Turn, Turn, Turn e sobretudo o desafio elétrico à pureza do folk acústico de Bob Dylan, na imortal versão de Mr. Tambourine Man.

É um pouco por aí que Laurel Canyon nos absorve completamente durante 160 minutos, começando por nos oferecer esse impressionante suporte visual sobre vida paradisíaca no canyon. Só que em vez de optar por uma sucessão de talking heads (como na versão de Echo in the Canyon, de Andrew Slater, um documentário sobre o mesmo tema, embora de menor qualidade e menos completo) a relatar esse período, Ellwood coloca o foco no manancial de imagens captadas pelos fotógrafos Henry Diltz e Nurit Wilde, entretanto coadjuvados com os registos áudio de diversos diversos músicos se referem em particular à sua experiência mítica daqueles montes.

Gradualmente, o canyon viria a escutar os sons dos Doors, Buffalo Springfield, Mammas and the Pappas ou os Love criando um acontecimento musical que viria a transformar o folk numa contracultura que haveria de culminar em Woodstock. A segunda parte, pertence a Joni Mitchel, Jackson Browne, Crosby Stills Nash & Young, Linda Ronstatdt, the Flying Burrito Bros e The Eagles. Igualmente em ritmos mais negros, marcados pela tragédia de Altamont, o assassinato de Sharon Tate, a contestação do Vietname e os direitos civis. Há até um pedaço tão inesperado quanto memorável na contribuição de Steve Martin (sim, o ator) pelo seu envolvimento com Linda Ronstadt.

Em Gimme Shelter são os acontecimentos de Altamont que se intrometem dentro dessa equação social entre a passagem dos anos 60 para os 70 e o que isso significou e que traumas comportou. Desde logo, no plano do cinema, traz-nos um dos melhores registos do cinema verité tal como concretizado pelos irmãos David e Albert Maysles e com a muito relevante colaboração e experiência de Charlotte Zwerin, cujo trabalho de edição lhe mereceria um crédito na realização. Mesmo que a versão final do filme tenha sido menos do que fora projetado – o documento da digressão dos Stones de 69 – e mais a reavaliação do fatídico concerto, sobretudo por as imagens terem captado o assassinato de Meredith Hunter por Alan Passaro, dos Hell’s Angels, imediatamente após o primeiro sacar de uma arma e ser apunhalado em seguida.

Talvez por isso também, sejam ainda os momentos menos relevantes, em que (quase) nada se passa a conferirem a Shelter o seu estatuto de clássico. Pelo meio, o documento sobre o concerto gratuito no circuito de corridas de Altamont, o concerto derradeiro dessa digressão, que acabou por ser testemunha de quatro nascimentos e quatro mortes. Por aqui se testemunha esse limiar dos anos 60, já dominado por muito ácido e descontrolo. Algumas imagens parecem mesmo saídas de um filme de terror, com personagens transfiguradas por bad acid e speed.

Mas há mais, muito mais, em Gimme Shelter. Desde logo, a montagem. Aliás, o próprio título do filme só o vemos na mesa de montagem. É a negociação do fleumático advogado da banda Melvin Belli a assegurar o espaço do show; mas também a crítica feroz de Pauline Kael em que é mesmo sugerida uma quota de responsabilidade aos Maysles, em algo que entende ser um cruzamento de um concerto rock com um segmento Zappruder, numa clara associação ao segmento do assassinato do presidente Kennedy.

Talvez por isso mesmo, torna-se ainda mais relevante o elemento ‘aqui e agora’ que gera uma proximidade entre estes dois registos musicais que dizem muito sobre esse tempo.

 

IndieMusic

Laurel Canyon: A Place in Time (sessão única 26/8)

Gimme Shelter (sessão única 4/9)

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