Quinta-feira, Abril 25, 2024
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Berlinale: Dos animais e dos homens. A primeira vaca e o extermínio de Auschwitz

First Cow, o novo filme da americana Kelly Reichardt exibido em competição para o Urso de Ouro, serve-nos um novo conto do verdadeiro Oeste que recusa ser uma qualquer adulteração do género mais povoado por clichés. Aliás, o poema de William Blake com que principia o filme parece dar o mote (The bird, a nest, the spider, a web, man friendship), quase como sublinhando a contradição das lendas locais, de certa forma recordando certos aspetos mais mundanos de Os Irmãos Sisters, de Jacques Audiard, de 2018. First Cow ganha kudos ao prolongar o lado realista e humanista dessa mitologia americana num prolongamento coerente de Meeks Cutoff e dos quadros fílmicos anteriores, desde a sua estreia, em 1994, com River of Grass.

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Há como que um acentuar clínico e antropológico do que se passa em redor. E é interessante como oscilamos entre o lado mais rude dos gold diggers de Oregon e um certo refinamento introduzido pela pastelaria fina, confirmado pela ligação improvável entre um ex-pasteleiro e um chinês em fuga, ambos à procura de fortuna. O encontro ocasional ganha estrutura ao surripiar o precioso néctar da vaca e fritar filhós que logo conquistam a população local e depressa os convertem num negócio com capacidade de se converter numa espécie de franchise lucrativa. Assim parece ser a resposta mais refinada ao capitalismo selvagem em vigor na região. Sobretudo depois de entrarem em cena os pedidos requintados de um pezinho-mole britânico (Toby Jones). No fundo, se quisermos, poderemos ter aqui uma leitura subtil sobre os instintos humanos (americanos?) que combina bem a intenção do poema de Blake. Pena é que as personagens principais dificilmente ultrapassem um mero esboço neste retrato floral e bucólico do velho oeste.

Percebe-se que esta Primeira Vaca se tornou até agora no filme queridinho do festival, numa aproximação às fantasias próximas de Apichatpong Weerasethakul. Infelizmente não é isso que vemos aqui. Pois o que temos é… mais bolos.

Da vaca de Reichardt às vacas de Victor Kossakovsky. Às vacas à sua irresistível vara de porcos, bem como ao olhar inquisitivo das galinhas que nos encaram no documentário silencioso Gunda, exibido na secção competitiva Encontros. É claro que há qualquer coisa de ternurento nos leitões rosa, pelo menos desde Um Porquinho Chamado Babe (1995). A câmara paciente e observadora de Kossakovsky opera a preto e branco uma maravilha próxima do magnífico Aquarela, quando captou a energia e a força da água e do gelo em 96 imagens por segundo. E a magia de esperar algo que sempre acontece. Desta vez, a ideia é a mesma, mesmo que poucos sejam os cinemas a poder exibir esta altíssima resolução e o som ATMOS como defende o cineasta russo. Ele que em Lisboa já levantara um pouco o segredo do que seria o seu novo projeto, sobre os vários “biliões de animais anualmente criados apenas para serem executados”.

The Last Stage

Ora, quis o acaso da nossa programação festivaleira orientar-nos a uma sessão da Berlinale Classics onde descobrimos The Last Stage, a primeira ficção sobre os campos de concentração, realizada pela polaca Wanda Jakubowska, em 1949, em Auschwitz, onde ela própria sobrevivera, exibido na comemoração do 75 anos da Libertação. O filme reproduz com um forte recorte documental a realidade do sector feminino do campo. Inevitavelmente, uma recondução que nos leva à reconstituição que Gillo Pontecorvo fez em 1960, com Kapo, cuja crítica arrasadora movida por Jaques Rivette (e Serge Daney) considerou ‘obsceno’ o famoso travelling do suicídio da personagem principal, interpretada por Emanuelle Riva. Aqui não temos um travelling, mas um plano (igualmente obsceno) – praticamente idêntico a Gunda – em que as mulheres enchem os diversos camiões que deverão seguir em fila até ao edifício onde sai o fumo constante das cremações. No caso de Gunda sabemos que não é isso que acontece, mas sim a conversão dos animais em nacos da carne apresentados num qualquer menu de restauração. Ainda assim, a ideia do extermínio não fica totalmente deslocada.

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