Sábado, Abril 20, 2024
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Especial: Os V’s de Vitória de Pedro Costa

Porque antes de Vitalina havia Ventura.

E Vanda

Sim, antes de Vitalina Varela havia Ventura. E Vanda. Estes os V´s de Pedro Costa. Seguramente não de vitória. Ainda assim, há nessa letra, ou nessas pessoas, uma verticalidade que se impõe. Empedernida como a lava. Como estátuas vivas. Eles que se revêm nos quadros de Géricault e nas fotos de Riis.  Mesmo que andem aos caídos, como Vanda à procura de gotas para queimar. É a força desse legado de deserdados que lhe dá essa espessura tremenda e inabalável. V’s de vitória, pois.

Agora que o nome (e o cinema) de Pedro Costa volta a reclamar a notoriedade que se lhe deve, com a conquista do Leopardo de Ouro em Locarno – e ainda o prémio de interpretação de Vitalina Varela, na verdade o nome dela é o título do filme – torna-se pertinente a partilha deste trabalho académico que nos levou a repensar e refletir todo o trabalho de Costa. As curtas, as longas, a exposição em Serralves, os ensaios filosóficos sobre a sua obra. Só não nos debruçamos ainda sobre ‘Vitalina Varela’ porque, malogradamente, acabou por não se concretizar a nossa ida a Locarno.

“O corpo de Ventura na obra de Pedro Costa – Da Ilha do Fogo a Serralves’

 

Trabalho de investigação para um seminário de mestrado em Estética e Estudos Artísticos na FCSH. Com a orientação do Prof. Dr. João Constâncio

 

A obra cinematográfica de Pedro Costa apresenta-se intimamente ligada à expressão física das suas personagens e, em particular, do seu corpo. Ou a forma como ele é moldado pela lava, um elemento geológico intimamente ligado à sua obra. Como se estes seres que nos encaram diante de uma luz etérea assumissem uma entidade, uma aparição, produzindo em nós a “sensação” de que fala Deleuze na sua obra seminal (Gilles Deleuze, Francis Bacon, A Lógica da Sensação(Lisboa: Orfeu Negro, 2011). A partir dessa ligação íntima, quase fantasmagórica e plástica do corpo no ecrã, abre-se então um espaço em o cinema se prolonga e assume uma qualidade de diálogo entre a fotografia, a pintura e a instalação.

Ao longo deste trabalho procuraremos demonstrar como esse corpo, em particular o corpo de Ventura, personagem que se agigantou ao longo dos seus filmes, e os seus elementos – sangue, carne e ossos -, supera a consciência que dele temos e forma uma sólida aliança estética e profundamente social reforçando o olhar e a intenção do cineasta.

Ao optar por esta opção tripartida, e essa nomenclatura, tencionamos encontrar uma desejada dimensão orgânica na obra de Pedro Costa que refletisse algumas orientações. Desde logo, numa primeira parte (o sangue), situando e identificando a singularidade estética da sua filmografia, nunca perdendo de vista essa ideia de corpo; indagando depois a aproximação da inevitável premissa filosófica e estética, em particular filtrada pelo pensamento de Deleuze, Merleau-Ponty e Espinosa, mas também José Gil (os ossos); por fim, analisando as diversas variantes e cambiantes desse corpo artístico (a carne) tal como foi apresentado na recente exposição Pedro Costa Companhia, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves.

Foi este o caminho que ousámos trilhar, num misto de atitude crítica e reflexão filosófica procurando equacionar alguns problemas estéticos da obra de um dos mais excitantes autores da atualidade, mantendo embora a devida proximidade com o referencial do nosso seminário de Estética e Estudos Artísticos, na FCSH.

 

O Sangue – A genealogia e metamorfose do corpo no cinema de Pedro Costa

No início foi um estalo. A bofetada feita desaforo do pai Canto e Castro ao filho Pedro Hestnes, no filme a preto e branco, embora de título escarlate, O Sangue (embora, como se sabe, com o tempo o sangue fica… negro). Anunciava assim Pedro Costa ao mundo, em 1989, a sua chegada ao cinema. Num longo plano médio de frente, o jovem Hestnes fitava-nos; depois, Canto e Castro. Antes do filho, ainda imóvel, oferecer ao pai a sua sentença: faça de mim o que quiser.

Pedro Hestnes, O Sangue (1989)

Há o estalo sim, mas há também o vulcão em erupção na ilha do Fogo em contracampo com os quadros vivos das jovens cabo-verdianas em Casa de Lava (1994). Ou o inolvidável e enigmático plano fixo de Vanda/Clotilde em Ossos (1997), já nas Fontainhas. No Quarto da Vanda (2000) já não há espelho. Pelo menos não no acender de isqueiro na prata que vai derretendo a heroína que Vanda e a irmã Zita vão fumando à vez e tossindo de forma cavernosa. Não há espelho, mas há o incómodo da proximidade que nos coloca dentro desse quarto espelunca de paredes cor de bolor em que durante as cerca de duas horas e meia vai derretendo o que ficou de Ossos, mas também do que veio antes. Nesse sentido, será, por assim dizer, a depuração máxima do que vimos dizendo.

Juventude em Marcha (2006)

Este é, portanto, cinema orgânico, que muda, que morre e se exorciza. Mas não fiquemos por aqui. E o que dizer então da quebra do contracampo e dos móveis atirados pela janela em Juventude em Marcha (2006) e da imagem de Clotilde, a mulher de Ventura, de faca em punho a excomungar a sua vida. E que papel terão as fotografias de emigrantes recém chegados aos Estados Unidos no início do século XX que abrem Cavalo Dinheiro (2014)?

Antes de mostrarem o quadro vivo de Théodore Géricault, em que um negro de olhar baixo é pintado com dignidade, que vemos em Cavalo Dinheiro. E o corpo nu e negro de Ventura que parece regressar das catacumbas ou na reencarnação zombie que também acompanhou a sua obra. O Cristo ressuscitado?

É claro que daqui abordámos apenas o primeiro impacto de cada filme, mas por si só capaz de ilustrar esta ideia de metamorfose do corpo. Mas também a dimensão de um corpo que, inevitavelmente, nos olha e afeta. Foi também ao longo desta dinâmica de espelho – ou contracampo – que Costa nos foi mostrando o caminho que decidiu trilhar.

Frequentemente, num feixe de emoções contrárias, um misto de “distanciamento e participação”, como refere Carlos Melo Ferreira, embora não traduzida um efetivo “afastamento mas convite para estarmos atentos” (Carlos Melo Ferreira, Pedro Costa (Lisboa: Edições Afrontamento, Outubro 2018). Mesmo saindo do acervo de longas metragens, a mesma tónica prolonga-se nos documentários (ou mesmo nas curtas) de Pedro Costa. Seja a observação do trabalho de edição de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, em Onde Jaz o Teu Sorriso? (2001), ou fisicamente no seu trabalho, seja na observação frame by frame de um plano do seu filme Sicília! Mas talvez mais ainda na intimidade com que capta a cantora Jeanne Balibar, em Ne Change Rien (2009).

Sans Soleil, Chris Marker (1983)

Atento esteve Pedro ao cinema que queria fazer. Ao idealizar o tal remake de I Walked With a Zombie, de Jacques Tourneur (1943), acabou por inscrever no seu livro de rodagem, não a descrição dos planos, mas uma coleção de imagens, recortes e tons. Para além disso quis-se perder nesse vulcão, talvez já na mente com os planos de Sans Soleil, de Chris Marker (1983). De certa forma, parece até que os rostos femininos destas mulheres sem receio de encarar a câmara, se prolongam nos tais olhares do início de Casa de Lava. Na verdade, as mulheres são as mesmas, porque os homens já emigraram todos, para Lisboa ou Boston. Tal como Ventura, o ex-pedreiro que saiu de Cabo Verde a 29 de Agosto de 1972, para desembarcar em Lisboa e que trabalhou na construção do museu da Fundação Calouste Gulbenkian.

Pelo meio há todo um percurso, uma viragem estética feita de procura e reflexão de um passado colonial aliado a um regresso a um primitivismo de fórmulas de trabalho e de fazer cinema. Mas também a presença de entidades (sim, são mais do que personagens) que impõem o seu corpo na dinâmica da ação. É Ventura, é Vanda, é Vitalina, são outros, embora esta santíssima trindade dos três V’s – que será o oposto de vitória – adquire um significado que vai muito para além do seu lado meramente corpóreo. Até porque Vitalina Varela deverá cumprir o seu destino no aguardado trabalho de Pedro Costa, As Filhas do Fogo, o trabalho que o cineasta estará prestes a nos devolver e concluir uma trilogia, a de Ventura.

Vitalina Varela (2019) 

Mesmo que tocado por outros objetivos e intenções estéticas, permanece esse fio condutor feito de sangue, músculos e ossos que liga estes gestos. E nem sequer abordámos o possível contracampo da Ilha e do fogo com a metrópole, ou dos brancos de Lisboa (Inês de Medeiros, Pedro Hestnes, Isabel Ruth, os herdeiros do cinema novo e derreterem-se na lava) com o negro Ventura, as crioulas ‘meninas do Fogo’ e os ‘coloridos’ do bairro das Fontainhas. Dos diferentes tons de cinzento do cimento à cor da lava, aos vermelhos dos tijolos e aos ocres das paredes das Fontainhas, num contraste quase assético com os brancos irreais do novo bairro em que Ventura não se consegue ambientar em Juventude em Marcha.

Casa de Lava (1994)

De campo em contracampo poderíamos abarcar também “os que nada têm” separando-os dos “que tudo têm”, estes aqui dispensados porque omnipresentes. Por aqui se enfrenta o documento a fingir realidade porque se terá alimentando de ficção, das ficções que sempre habitaram a mente de Pedro Costa e que a vampirizaram para criar estes ‘híbridos’ cinematográficos plenos de mortos-vivos, de vivos que passam à condição de mortos, e vice versa. Sejam os fantasmas de Charles Laughton nas ‘sombras e dos caçadores’ à solta em O Sangue, bem como a angústia presente em quase todos os filmes de Nicholas Ray.

Afinal de contas da arte, da pintura, porque são quadros vivos os que Pedro Costa tem levado à tela ao longo da sua obra absolutamente orgânica. Feitos de luz e sombras onde uma proximidade ou herança renascentista se mistura com os contrastes da escola flamenga ou de Cézanne, como os que Ventira observa na sua onírica e real (de Rei) viagem ao Museu Gulbenkian. E o que dizer das fotografias de Jacob Riis, os tais instantâneos que abrem Cavalo Dinheiro, como que a fixar aquilo que é essencial e que precede o que vemos. Um espetáculo de sensações ao som das mornas que enlouquecem a paisagem, em particular o febril e encantatório Alto Cutelo, dos Tubarões, capaz só por si de levantar os mortos. Daqui só mesmo o punkcompassado de Lowdown, dos Wire, porque faz parte do ADN de Costa, da sua alma revolucionária, do inconformismo que assiste e regista.

Que “mistura visual”é esta que se depura à medida que se despoja de tudo, do cinema que assim se encontra, que nasce do chão, dos rostos, das conversas, das imagens suspensas? Da pureza e rigor da planificação da filmagem em película a preto e branco do primeiro filme, para o improviso e as longas horas de planos-sequência captados em vídeo miniDV No Quarto da Vanda. É o cinema que nos atravessa e nos encara. E que mirada lhe poderemos devolver?

O que fica é o tal ato de criação poética. E os corpos. Sim os corpos. Porque a alma já ali não habita. Mas apenas as suas ‘forças’. Ou algo ainda mais ancestral. Portanto, o que temos é então o sangue (a preto e branco), os ossos (ao vivo e a cores), a carne, essa ‘semelhança’ daquilo que é visível mesmo fora do quadro (ou do plano cinematográfico).

Como se através do cinema, Costa acabasse por tocar algo de fundamental, como se o despojamento quase arqueológico destes seres, da “sorte dos explorados”, sejam eles da Ilha do Fogo, das Fontainhas ou, mais recentemente, do bairro da Jamaica, e que subitamente adquirissem uma força ancestral, uma expressão em que o contraste entre a luz e as trevas nos encara com uma violência difícil de suportar. Só que a Costa não interessa “nem inscrição do bairro de lata na paisagem do capitalismo em mutação, nem instauração de um palco apropriado à grandeza coletiva”, como refere Rancière na sua obra 100 Mil Cigarros – As Obras de Pedro Costa (Lisboa: Orfeu Negro). Ou num sentido mais plural dos que ficam do lado de lá do Muro. É, nesse sentido, um cinema arrancado do chão, da terra, da lava ou do cimento, em que a carne se impõe antes do existir das personagens, como se o realismo segue através dessa fisicalidade, deixando portas abertas para uma inegável marca social, política e estética.

No Quarto da Vanda

Em apenas três décadas, podemos dizer que o ponto de vista cinematográfico de Pedro Costa reivindica um merecimento cultural e estético que não fica muito distante da visão fenomenológica da obra de Manoel de Oliveira. Um gesto aglutinador que a exposição de Serralves sublinha essa dimensão. Um cinema feito do que o corpo, as suas potencialidades, têm para nos oferecer. Seguramente desde No Quarto da Vanda, que já sintetiza a depuração iniciada em Casa de Lava e que projeta essa gesta de Ventura, desde Juventude em Marcha (2006) a personagem zombie que é, também em parte, o cinema de Pedro Costa.

Pedro Costa realizou seis longas metragens e outras tantas curtas, para além de alguns documentários. Uma obra densa, desafiante, singular que convida o espetador perplexo a procurar significados para além das imagens, a sentir emoções que o perturbam, incomodam, assombram. É precisamente essa ligação ‘física’, essa intensidade do olhar, que importa rever. Seja na conceção de mise en scène, direção de atores (a partir de muito cedo, e no traço grosso da sua obra, não profissionais), no jogo de luz. Mas também na imprecisão de género, algures entre a ficção e uma experiência de real.

A epifania de pedro Costa – chamemos-lhe assim – ocorre na encruzilhada traumática do seu segundo filme, Casa de Lava (1994), em que se opera um gradual ascetismo de narrativa, de formas e métodos com a presença física de planos fixos de rostos a sucede à irrupção do vulcão da Ilha do Sal para dar lugar a um posicionamento diferente do corpo, de um ponto de vista do próprio como veículo que nos hipnotiza com os seus gestos e dizeres, como uma composição pictórica. É daqui que tudo parte, uma espécie de arqueologia em que os rostos destes seres nos remetem para a perenidade conferida pela lava, como os corpos que Ingrid Bergman observa em Viagem a Itália, de Rossellini (1954). Ela que já percorrera uma ilha vulcânica em Stromboli (1950), também do marido Rossellini, um filme que ‘casa’ muito bem com Casa de Lava.

Apesar da belíssima estreia com O Sangue, de certa forma Casa de Lava será um segundo primeiro filme, no sentido que marca a sua recusa a um certo cinema, a uma certa maneira de fazer as coisas. É nesse sentido, um reviver, talvez como cineasta zombie também ele, seguramente num filme de zombies. Ele que queria fazer uma espécie de remake de I Walked With a Zombie, de Jacques Torneur.

I Walked With a Zombie (1943)

É esse corpo, esse fragmento que nos vai insinuando o caminho.

No fundo, esse parece ter sido também o trabalho de procura identitária do próprio realizador que encontrou nesse olhar ausente, sem receio de encarar a câmara, na refundação gradual do seu cinema depurado e ancestral. Desde o contraste fotográfico de O Sangue (1989) à depuração bressoniana e procura cromática registada a partir de Casa de Lava (1997). Talvez esse excesso ‘autoral’, dos cânones aprendidos na Escola de Cinema, o terão tenha feito procurar a sua própria essência punk ou revolucionária a fazer os tais “filmes politicamente”, em vez dos “filmes políticos” que fala o ‘amigo’ Victor Erice no único texto do catálogo da exposição Pedro Costa Companhia, em Serralves.

Estes rostos esfíngicos Casa de Lava, que regressaram a Serralves, sob enorme telas na enorme instalação, estarão na origem do novo projeto de Pedro Costa, As Filhas do Fogo, atualmente em estado de pós-produção. À medida que a narrativa se vai esbatendo, os sons folclóricos começam a invadir essa mistura cultural que será o ADN do cinema de Pedro Costa, em particular Cavalo Dinheiro. Mesmo que recebido com algumas reservas, talvez por não ser um filme para público, não deixa de ser a génese deste cinema nascido do fogo. Um fogo em que Costa quis caminhar, ao assumidamente deixar-se perder num certo ambiente de loucura narrativa.

Felizmente, temos Ventura e os seus gestos épicos, mesmo quando os dedos tremem. Ele que recebe a dignidade de Pedro Costa que o filme como estivesse diante uma divindade. Depois do seu gesto majestoso de entrar no museu Gulbenkian, o tal que ajudou a construir, e ser encarado por nós ao lado de dois Rubens e um Van Dyck, mesmo sendo importunado por um vigilante. Só que antes já havia adquirido a ‘mimesis’ aristotélica e uma autonomia ontológica, confirmada nas várias salas da exposição de Serralves.

 

Ossos – Pedro Costa: Companhia – há fantasmas em Serralves

Os fantasmas de Pedro Costa foram a Serralves, que lhes abriu as suas portas e celebrou esta arte dos deserdados. Foi aí que o cinema comungou com a fotografia, a música, a pintura, os espaços, o vídeo, os sons, a escultura, gerando a uma força particular e a capacidade para um inevitável contágio recíproco.

Mal entramos no espaço dedicado a Pedro Costa: Companhia percebe-se a eminência do convite à escuridão na medida em que avançamos num corredor escuro, como numa câmara escura, ausente de luz, onde apenas se escuta a voz de Ventura.

Ao sair para a claridade percebemos muito melhor as diversas articulações, pontes e diálogos que o seu cinema estabelece com a fotografia, a pintura, a instalação, bem com numa perspetiva mais vasta como se articulam as suas referências cinéfilas e as proximidades estéticas com a sua Companhia. Neste diálogo multifacetado, Pedro Costa sugere a companhia de seus cúmplices. Desde logo, os filmes.

Desamparados, seguimos o foco de luz ao fundo que nos revelará um monitor com um excerto do final de Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Martins Cordeiro. É o longo plano do comboio que sai da estação (ao contrário de Lumière) e deixa para trás o pastor e o rebanho de cabras, num registo de ‘docuficção’, em que o espaço documental é tratado com uma narrativa, como que a assinalar onde Pedro Costa emergiu para a luz do cinema, e nos estudos do Conservatório. No entanto, nesse corredor escuro veremos ainda um criptopórtico do fotógrafo André Cepeda com imagens espectrais de um negro que nos remetem para o tríptico de deformações de Francis Bacon.

A alternativa de percurso na exposição pode ser dada com o monumental campo contracampo na sala Alto Cutelo, instalação criada para o DocLisboa, em 2012, em que o excerto do vulcão em irrupção no início de Casa de Lava, da autoria de Orlando Ribeiro, é encarado pela triste sorte de Ventura, como que a sugerir a elipse que liga a sua jornada, a do seu povo, mas também a do cinema de Pedro.  Pelo menos desde a sua ‘epifania’ de perca e despojamento de meios, que o libertaram de um cinema mais formal, ainda que empenhado, de forte carga fotográfico, para esse choque frontal com a descoberta do outro operado pela comunidade cabo-verdiana.

Revivemos também a viagem de saudade da carta de amor ancestral, a que o poeta surrealista Robert Desnos escreveu à amada Youki durante o cativeiro no campo de concentração nazi, em1944. As duas páginas do manuscrito original estavam ali mesmo ao lado por detrás de uma vitrina, onde se lê: “Notre souffrance serait intolérable si nous ne pouvions la considérer comme une maladie passagère et sentimentale…”

Embora esse tenebroso raccord oral deste espaço de morte, em tom crioulo, já tivesse passado pelas barracas das Fontainhas, em  que Ventura lerá por mais de uma vez a versão crioula à sua mulher Vitalina, em Juventude em Marcha e depois em Cavalo Dinheiro, embora palavras já ecoadas em Casa de Lava. Porque há coisas que nunca morrem que nunca passam. Como os zombies que assombram este cinema e o espaço de Serralaves.

Há em todo o cinema de Pedro Costa um certo lado “irremediável”, ou de “deriva radical” a que se entregam as personagem do tríptico No Quarto da Vanda, Juventude em Marcha Cavalo Dinheiro em que “não se deteta o menos rasgo de humanismo” ou “redenção possível que não passe pelo reconhecimento do outro”, como sugere Victor Erice no programa que acompanha a exposição Pedro Costa: Companhia[9].

Busto de negro, Theorode Géricault

É talvez esse sentimento que une os emigrantes das Fontainhas com a galeria de “deserdados” das fotos de Jacob Riis, Walker Evans ou James Agee nesta viagem histórica e transcendente ao longo dos corredores escuros e salas amplas onde a memória do cinema se complementa com a fotografia, e a pintura com as instalações fotográficas e mais de duas dezenas de ecrãs vídeo num jogo subtil de figuras etéreas que pairam sobre nós e segredando-nos em crioulo um passado universal.

E se dúvidas houvessem, a dignidade do escravo negro, em Busto de negro de Theodore Géricault, datado do século XIX, o quadro com que abre Cavalo Dinheiro, de resto uma obra pertencente ao Museu Nacional de Arte Antiga, permite essa grandiosa elipse temporal. Uma elipse feita de gloriosos fantasmas que durante algum tempo tomou conta de Serralves.

 

  

Carne – O corpo segundo Deleuze, Ponty e Espinosa

Neste caminho em busca de justificação para este cinema corpóreo, acabámos por colher algum ponto de apoio nos trabalhos académicos do brasileiro Julio Bezerra intitulado ‘Pedro Costa ou o que pode um corpo?’  e do português Diogo Nóbrega, no artigo Apontamentos sobre a categoria estética do retrato. Os casos de Francis Bacon e Pedro Costa, integrado no estudo Cinema em Português, sublinhando esta ligação que nos surpreendeu por confirmar essa proximidade que haviamos identificado durante o estudo da obra de Bacon. Desde logo, sugere-se a “exploração das potencialidades do corpo”, suportado pelo desenvolvimento conceptual de Merleau-Ponty, Deleuze e Espinosa, bem como a extensão da reflexão das noções de ‘sensação’ e ‘afecto’ emanadas do conceito figural da obra, tão cara a Deleuze. E o que são os grandes planos de Pedro Costa senão imagens de “puro afeto e sensação”? Aceitemos então, por agora, este diálogo, nem que seja como meio de investigação na tentativa de detetar algo de singular, mesmo que não pertença ao cinema, mas que apresente novos caminhos.

É mesmo Costa quem refere a expressão “o que pode um corpo?”, tomada aqui no sentido de potência e não, naturalmente, na mera atividade do corpo. Mas é Deleuze quem explica o sentido de Espinosa, ao considerar que o corpo ultrapassa o conhecimento que temos dele e que chegaremos a captar a potência do corpo para além das condições dadas pelo nosso conhecimento.

É inegável que o seu cinema nos provoca sensações, impulsos, um feixe de imagens que afetam inevitavelmente o nosso sistema nervoso. Um grau de originalidade que Bezerra considera como uma “revirginização do olhar”, no sentido de passarmos em revista os seus métodos de trabalho, a mise em scène, o tempo narrativo, o trabalho de atores. Isto para além, bem entendido, da opção narrativa documental ou ficção, embora a acontecer ao mesmo tempo num determinado tempo. Por isso, sugere o académico, o posicionamento do ponto de vista do corpo. “O corpo talvez seja o meio, o ponto e partida mais proveitoso para se aproximar desse cinema. Isto porque o cineasta nos mantém em estado de hipnose por um encantamento de gestos, de olhares, de ínfimos movimentos do rosto e do corpo, de inflexões vocais, no seio de um universo de objetos encarnados”, naquilo que será encarado como uma “experimentação” sobre as potencialidades do corpo. Atentemos no plano de abertura O Sangue, de Cada de Lava, de Ossos, de Juventude em Marcha, de Cavalo Dinheiro. É a coerência que anda por aqui, em figuras desenhadas com uma geometria do plano e inseridas num cinema comprometido com uma certa realidade social. É aqui que o corpo define a sua potência e os seus laços de afetos, mesmo numa recusa de um qualquer ponto de vista de recorte sociológico ou de crítica social. É que toda a história está no corpo.

Já Diogo Nóbrega serve-se da problemática da figura no cinema de Costa, em particular o já mencionado aspecto da “reversibilidade”, em que “a visão do espetador colide com o inelutável volume dos corpos humanos fixados como estrutura primeira”. Tal como para Bacon, interpretado por Deleuze, “o corpo é a figura”, algo que Nóbrega exemplifica com o pungente plano inicial de Ossos, mas que poderia ser, afinal de contas, com os diversos “inícios” de filmes mencionados, em que esse corpo nos é entregue nesses planos (ou planos-sequência fixos) que convidam o nosso contracampo. Para isso, usa a expressão “excesso de visível”e “imanência energética” impulsionada por forças “que investem a figura sob a forma de uma desfiguração”. Para depois afirmar: “Tal como Bacon, o cineasta situa o seu projeto no intervalo ou fractura entre figura visível e as forças que o afectam”. Diante do dilema para encarar esse “intervalo” entre a “visibilidade do corpo” e o “não inscrito” que a afecta, propõe-se a leitura de José Gil, mesmo quando se serve do conceito de “sensações infinitesimais” que permitem ver formas de forças e, assim, a experiência proporcionada por esse plano (abertura de Ossos).

Será Ventura um ser de corpo sem órgãos? Socorramo-nos das palavras de Deleuze“A Figura é precisamente o corpo sem órgãos; corpo sem órgãos é carne e nervo; é percorrido por uma onda que traça nele diferentes níveis”. Nóbrega parece chegar a uma premissa diferente, recusando essa transcendência, esse ideal, sugerindo em vez dele o “processo que o difere sempre e o põe em conflito com um devir inapelável”, equacionando mesmo um “corpo sem imagem”, em comparação ao que Deleuze se referia como “pensamento sem imagem”. Encarando o corpo como um “ponto de partida”, Bezerra encara esse momento como um “estado de hipnose por um encantamento de gestos de olhares, de ínfimos movimentos do rosto e do corpo”ou quando encara esse plano como uma “sismografia, puro registo de movimentos de um corpo”, sendo aqui que Pedro Costa realiza a sua “arte da epiderme”, em que o corpo faz a sua “escrita viva”. Nesse plano, Nóbrega não se distancia muito, referindo que “não existe uma situação rígida e estável do corpo”, mas apenas “um infinito de ínfimos movimentos que impedem a determinação de uma forma e de um corpo fixos”.

Bacon fala do corpo vivido, o corpo que sente que está na tela, com os seus perceptos, os seus afectos. Mas conseguirá Costa tornar visível aquilo que não é visível? Assumir esse ideal de libertação para expor esse interioridade do corpo, esse corpo sem órgãos? E o que será Ventura a aparecer na catacumba no início de Cavalo Dinheiro se não esse corpo impregnado de uma carga negativa, feita de dor e sofrimento. Nesse sentido, é um corpo figurado, um corpo representado. A figura é suficientemente forte para vislumbrar aí um simulacro do Cristo Morto, de Holbein. Depois da morte de Cristo, temos a Páscoa de Ventura, ao regressar do reino dos mortos naquele início mágico e macabro de Cavalo Dinheiro, um deus negro e sem roupa, um deus zombie. O tal rei que se sentou no sofá estilo Luis XIV, na Gulbenkian, a admirar um quadro de Rubens na parede que possivelmente ele ergueu. Neste caldo de passado e presente joga Pedro Costa com algumas possibilidades narrativas servindo-se deste corpo.

Ventura, Cavalo Dinheiro

Merleau-Ponty invoca a subjetividade, da experiência do “corpo-sujeito” como premissa para “compreender o homem e o mundo (…) a partir da facticidade”, no fundo uma “abertura para o mundo” já que se refere ao corpo integrado nesse mundo. Ora, é por aqui que cresce o cinema de Pedro Costa. No corpo negro de Ventura, na história de emigrante ancestral que o corpo carrega. Nesse sentido, não é a história da vida de Ventura que nos é imposta. Costa decide sublimá-la para nos oferecer a potência da sua figura estética. É nesse sentido que Nóbrega vem falar de “capitalismo estético”, ao “fazer da vida ordinária, do imaginário, dos modos de produção subjetiva, o centro das sua atenções”.

Jacques Ranciére parece subscrever esta posição quando escreve que “não é a miséria do mundo que Pedro Costa filma, mas a sua riqueza, a riqueza de que qualquer um se pode apoderar”. E não resistimos a transcrever a tão bela frase que questiona: “Não será isto que poderemos esperar do cinema, a arte popular do século XX, a arte que permitiu ao maior número de pessoas, àqueles que não transpunham as portas dos museus, deleitar-se com o esplendor de um efeito de luz num cenário vulgar, a poesia de um tinir de copos ou uma conversa banal ao balcão de um café qualquer?”. Não será Ventura tudo isto?

Aqui chegados parece-nos clara a “sensação” que o cinema de Pedro Costa instala do olhar no espetador. Nesse sentido, é um cinema feito de subjetividade que olha para fora, de figuras que olham para fora e se alimentam desse olhar, como que a participar na sua construção. Nesse sentido, Ventura, Vanda, Clotilde ou mesmo Vitalina são corpos que se alimentam dos nossos olhares, como uma alucinação em nome da construção desse olhar numa experiência quase transcendental, como uma mise em abîme! Pois é esse o seu olhar, o seu cinema. Um cinema que olha para nós!

 

FONTES E BIBLIOGRAFIA

Livros

Deleuze, Gilles, Francis Bacon, A Lógica da Sensação. Lisboa: Orfeu Negro, 2011.

Gil, José, A imagem-Nua e as Pequenas Percepções/Estética e MetafenomenologiaLisboa: Relógio D’Água, 2005.

Melo Ferreira, Carlos, Pedro Costa. Lisboa:Edições Afrontamento, 2018.

Merleau-Ponty, Maurice, Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

Rancière, Jacques, Thom Andersen, Philippe Azoury, Johannes Beringer, Nicole Brenez, Rui Chafes, João Bénard da Costa, Richard Dumas, Bernard Eisenschitz, Chris Fugiwara, Tag Gallagher, John Gianvito, Jean-Pierre Gorin, António Guerreiro, Shiguéhiko Hasumi, João Miguel Fernandes Jorge, Philippe Lafosse, Jacques Lemière, Dominique Marcais, Adrian Marin, José Neves, João Nisa, Mark Peranson, James Quandt, Jacques Rancière, Andy Rector, Jonathan Rosenbaum, Paolo Spaziani, Luce Vigo e Jeff Wall,100 mil cigarros– Os Filmes de Pedro Costa. Lisboa:OrfeuNegro, 2009.

 

Artigos científicos

Bezerra, Julio. “Pedro Costa ou O Que Pode um Corpo?” Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Universidade Federal de Juiz de Fora (1981).

Nóbrega, Diogo. “Apontamentos Sobre a Categoria Estética do Retrato. Os Casos de Francis Bacon e Pedro Costa.” Universidade da Beira Interior(2016).

Erice, Victor “Pedro Costa Companhia.” Fundação de Serralves(2018).

José Gil, A imagem-Nua e as Pequenas Percepções/Estética e Metafenomenologia(Lisboa: Relógio D’Água).

 

Filmografia

O Sangue, 1989.

Casa de Lava, 1994.

Ossos,1997.

No Quarto da Vanda, 2000.

Onde Jaz o Teu Sorriso?, 2001.

Juventude em Marcha, 2006.

Ne Change Rien, 2009.

Cavalo Dinheiro, 2014.

 

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