Sexta-feira, Abril 19, 2024
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Marcelo Gomes volta ao documental para retratar a febre do ‘jeans’ em Toritama

Marcelo aborda ainda a atualidade da política nacional

“Temos um governo que não acredita no aquecimento global”

A nova revolução industrial é no Agreste. Com o trabalho escravo familiar na forte indústria têxtil em Toritama, a ‘capital do jeans’. Trabalham o ano inteiro a pensar numa coisa: Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar. É quando vão a banhos no Carvaval.

Entretanto Marcelo Gomes conta já com o apoio do ICA para o seu novo projeto que fará com a portuguesa Ukbar Filmes. Chama-se O Vestido Branco, Véu e Grinalda, sobre Paloma uma agricultora transexual de Pernambuco.

(veja aqui o trailer oficial https://vimeo.com/313394503 )

Eles trocam o frigorífico e a televisão por uma semana de férias na praia. O título Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar, deste documentário exibido na Berlinale na secção Panorama Dokumente, vai-nos sugerindo de forma mansa o tom bossa para o refrão eterno de João Gilberto aplicado aqui à ‘capital do jeans’. É esse o único recurso para muitos cidadãos de Toritama fazerem uma pausa de uma vida de auto-escravidão a fazer calças de ganga. Aqui se vive a forma de capitalismo mais primitiva, em que quanto mais de faz, mais se ganha.

O cineasta Marcelo Gomes regressou à região do Agreste, no nordeste do Brasil, entre a zona da mata e o sertão, ao lugar da sua “memória afetiva”. Ali descobriu esta comunidade que lhe entregou um filme precioso. Tão precioso como os jeans agora considerados o ‘ouro azul’, adorados por agregados inteiros que dedicam a quase totalidade do seu tempo para produzir mais um bolso, mas um efeito, mas uma peça. É assim, quando o muito pouco faz toda a diferença do quase nada.

O que o motivou a fazer um filme no Agreste, uma região onde viveu, sobre esta gente que trabalha e se escraviza?

Por motivos profissionais tive que voltar para o Agreste.  No caminho passei por Toritama. Eu já tinha escutado e passado rapidamente pelo lugar, mas dessa vez fiquei inicialmente impressionado com os outdoors na feira da estrada. Depois me contaram do fato das pessoas venderem seus eletrodomésticos para passar o carnaval na praia.  Isso me intrigou. Pensei, será uma transgressão ao capitalismo selvagem que impera no lugar ou um ato de desespero ou mesmo fazem aquilo por outra razão?

Ora aí está uma ideia para um filme…

Gosto de fazer filmes sobre questões da vida que compreendo e ali estava algo incompreensível pra mim. Somando isso ao fato que o Agreste é o lugar de minha memória afetiva. Minha família tem origem aí. Minhas primeiras memórias de infância tem origem nessa região. Existia uma desejo latente de um dia filmar o agreste. O filme surgiu da união desses dois desejos.

Era o Brasil a redescobrir uma espécie de pequeno El Dorado. Sentiu que tinha um caminho para andar?

A partir daí tudo se transformou rapidamente e se queimaram etapas. O processo de industrialização se tornou esdrúxulo e muitos caíram nessa armadilha do enriquecimento rápido em função da auto escravidão. O neoliberalismo foi muito eficiente nesse sentido, ele realmente conseguiu vender muito bem suas verdades. Talvez a gente esteja vivendo um dos momentos mais cruéis desse sistema. Em nenhuma das conversas as pessoas se enxergavam como vítimas e tínhamos que respeitar isso na construção do filme. Poderia ser muito mais fácil fazer um filme que os colocasse nesse lugar, mas a realidade é muito mais complexa. Talvez vendo uma situação tão radical como a que acontece em Toritama, a gente possa refletir sobre a nossa própria relação com o trabalho, o consumo e o que fazemos com o tempo nas nossas vidas.

Era isso mesmo que queria perguntar: de que forma o próprio trabalho nos pode escravizar? Quase como uma religião…

Essa lógica atual em que você é um ser não do “dever fazer”, mas do “poder fazer”: posso fazer não sei quantas calças pra assim ganhar mais. Vejo a cidade como uma ponte entre o passado e futuro: de alguma forma ela representa a concretização de um projeto neoliberal que se deseja implantar em todo o país. No futuro viveremos todos uma realidade parecida a de Toritama, onde mesmo sendo aparentemente livres e podendo usar nosso tempo como quisermos, seremos induzidos a viver uma espécie de auto escravização. A falácia da autonomia num sistema de desejos induzidos. E seguiremos o lema construído pelos neoliberais nos anos 80s. Ganância é bom (Greed is good).

Imagino até que com essa intinerância e as viagens que fazia com o seu pai, a curiosidade do cinema poderá ter despertado, não?

É curioso porque eu nasci e cresci na capital Recife, mas todos que me cercavam eram pessoas do Agreste. Passei a infância escutando histórias do lugar, narrativas sobre um mundo que nunca vivi. Meu imaginário foi povoado pelo Agreste.  Vivi emoções de um lugar que não era o lugar onde eu estava fisicamente. O cinema é isso, vc se depara com um mundo na frente da tela que é outro mundo e não o mundo que vc habita fisicamente. Na verdade, o agreste foi o primeiro filme que construí no meu imaginário. Talvez por isso meu encantamento com o cinema desde minha infância.

A ideia de documentário – e não ficção – impôs-se desde o início, apesar de não ser alheio a esse estilo? E também a ideia de se incluir como voz que questiona e não selecionar apenas as declarações das pessoas?

Sim. Desde o início a ideia era ser um documentário. Quando cheguei em Toritama me deparei com uma realidade muito impressionante, que algumas vezes me fez pensar na Inglaterra do século XIX em pleno processo de industrialização: Aqueles totens enormes de propaganda na estrada, o rio azul, o trânsito caótico, a feira… Mesmo que várias cidades do Agreste tenham passado por um desenvolvimento sem planejamento dentro de um processo de industrialização esdrúxulo, acredito que nenhuma passou por mudanças tão radicais quanto Toritama.

Tão radicais que mudam as pessoas, concorda?

O que realmente me interessava não era essa mudança da paisagem urbana, mas precisamente a paisagem humana. Queria entender como foram alteradas as memórias, as referenciais culturais daquelas pessoas. Na década de 1980 a cidade tinha uma biblioteca, uma orquestra de música, teatro… E tudo isso foi extinto, não existe mais. Então eu realmente queria entender o que aquelas pessoas, que acompanharam todas essas mudanças, pensam da vida. Com o que elas sonham, o que elas desejam? E foi um choque pra mim quando elas disseram que achavam suas condições de trabalho boas e que estavam satisfeitas com a autonomia que o jeans representava.

Esta foi uma forma de reviver o seu próprio passado?
À medida que fazia viagens para Toritama as minha próprias memórias do passado apareciam. Eu vivi uma experiência de um outro Agreste. Achei que seria importante que aquilo estivesse no filme. Iria legitimar a existência do filme e ao mesmo tempo trazer memória e humanidade filme. Decidi então pela minha voz a narrar minhas impressões do lugar. Afinal cinema é sobre singularidades e a minha experiência no agreste também era singular.

Curiosamente, no filme do seu camarada Gabriel Mascaro, Divino Amor, a ideia do Carnaval é substituída por uma festa de oração musical. Aqui, é apenas o único escape para esta gente. Mas em ambos a ideia de uma entrega total – seja ao trabalho ou à religião, na verdade acho que não está muito separado. Concorda?

Concordo. Essa relação parece que o desejo de escape está presente independente de tempo e lugar. Todas as culturas, de uma forma ou de outra, procuram o lugar a da evasão para compensar uma vida rotineira e exaustante. E cada vez mais que o neoliberalismo impõe atividades profissionais mais duras para a produção de riquezas mais esses escapes são necessários.

Genial a ideia de recolher as imagens das ‘férias na praia’? Como surgiu essa ideia?

O documentário foi se construindo pouco a pouco. Quando começamos a visitar esses lugares, as pessoas se mostraram muito receptivas e se deixavam filmar e conversavam com tranquilidade. Só não queriam parar de trabalhar para ter que responder às minhas perguntas. O que pra a gente foi ótimo: filmávamos elas respondendo às entrevistas e trabalhando ao mesmo tempo. Óbvio que eu não poderia pedir outra coisa. Então a mim só cabia escutar, ver e entender o que diziam. E ao longo do processo fomos nos dando conta que nunca tínhamos filmado na casa deles, só quando a casa também era ambiente de trabalho. Todo mundo que a gente filmou estava numa situação de trabalho.

Como foi então que partiu para a intimidade deles no carnaval?

Tinha uma questão ética em jogo: uma equipe inteira de filmagem poderia estragar o momento de celebração e alegria que representava o carnaval pra eles. O trabalho toma a vida delas de forma absoluta e no único momento de transgressão dessa lógica a presença de nossa equipe poderia arruinar justamente aquilo que queríamos registrar. Pensando nessas questões, chegamos à solução de trabalhar com a ideia de dispositivo e distribuir câmeras entre eles para que cada um registrasse o seu próprio carnaval da maneira que quisesse. Ao longo do processo de montagem, Leo foi se destacando entre os demais personagens.

Sim, ele é um bom contraponto do filme.

É uma espécie de filósofo que sintetiza muito bem o pensamento de vários dos nossos entrevistados. Como as imagens que ele produziu no carnaval não diferem tanto assim das outras que recebemos, decidimos ficar só com a experiência dele. E essa forma de apresentar o carnaval me pareceu um desenvolvimento natural da minha postura em relação aos personagens em todos os momentos do processo, quando procurava ouvir o que pensavam e apresentar o que eles sentiam da maneira mais franca possível.

É claro que este é um filme sobre o novo Brasil, sobre o desenvolvimento e as suas consequências. Como é que avalia todo esse processo e como encara esta realidade nova e este novo ciclo com Bolsonaro? Haverá muita coisa a mudar?

Cedo ainda para dizer algo. Agora, se nota que existe um desgaste precoce evidente: várias ações foram reavaliadas e anuladas, voltaram atrás. O que se vê uma falta de preparo para governar um país complexo como o nosso. Algumas questões já ficaram claras. É um governo que não acredita em aquecimento global e implodiu os sistemas de controle ambiental (agora com o desastre de Brumadinho estão reavaliando posições como todas as ações que fizeram) e ainda vão acabar com a demarcação das reservas indígenas e tentar implantar um novo modelo de exploração agrícola na Amazônia o mais rápido possível.
Talvez seja hora de um grande acordo com toda a frente progressista em defesa da democracia. É hora de todos nós estarmos em alerta para garantir a solidez de nossas instituições democráticas.

Acha que o apoio ao cinema se poderá vir a ressentir?

Quanto ao audiovisual as leis de fomento funcionam muito bem e movem uma indústria de forte significação para o PIB do país e empregando milhares de pessoas. Acho que esse fomento não vai ser alterado pois acontece há mais de 20 anos e com imensos resultados para a economia do país. Quanto ao cinema autoral esse já está sofrendo com o fim dos apoios de estatais como Petrobrás e BNDES.

Num outro ponto de vista, encara ainda o cinema como uma arma de alguma reação para o que não é justo, mas também para um esclarecimento da população?

Cinema é o espelho de nossa cultura. Já se foi dito que o país sem cinema é uma casa sem espelho. Sempre precisamos ver nossa cultura refletida para nos conhecermos melhor e entender melhor quem somos e assim compreender melhor a vida e seus desafios.

Temos também de falar sobre o seu novo projeto em co-produção com Portugal. E uma vez mais com a Pandora e a Ukbar. Ficamos a saber que Vestido Branco, Véu e Grinalda vai ser apoiado pelo ICA. Mas o que podemos/devemos conhecer sobre este projeto?

Trabalhar com a Ukbar no JOAQUIM foi uma experiência muito gratificante e trabalhamos com profissionais talentosíssimos. Decidimos repetir. Estamos muito felizes de contar com o apoio do ICA através do edital de minoritários. O Vestido Branco, Véu e Grinalda é um filme sobre uma agricultora que mora no sertão de Pernambuco. Paloma é uma mulher transexual. Ela mora com Zé, seu marido, e com a filha Jenifer que teve em uma relação no passado com uma mulher. Um dia Paloma tem uma epifania e decide casar na Igreja. Na pequena cidade de Saloá, no interior de Pernambuco, a população é sacudida com o boato de um casamento religioso. O que deveria ser um cerimônia para reafirmar laços amorosos tem consequências desastrosas.

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