Quinta-feira, Março 28, 2024
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Aki Kaurismaki: “No fundo, escrevo tangos que os meus atores interpretam”

Numa entrevista em que se falou de tango e de fado, do idiota do Trump e do Putain (assim mesmo, com sotaque francês), do Benfica e do Porto (sim, Aki é portista), mas também das assumidas influências de Melville, Buñuel e Walsh. E ainda de um James Stewart que apelida de direitista, preferindo elogiar o olhar dorido de Robert Ryan. Ah, bebeu-se vinho verde, como é de lei. Mas, atenção, não há clichés em Kaurismaki. É precisamente nessa repetição que ele reforça a sua coerência e o seu cinema amplia significado. Claro que também se falou de O Outro Lado do Paraíso, aquele que Aki considera ser o seu filme mais importante.

 

Haverá dúvidas que Aki Kaurismaki é um dos mais consumados autores da atualidade? Pois, se há não deveria. O seu cinema de eternos loosers, irremediavelmente fumadores, irremediavelmente série B, é ao mesmo tempo de uma profunda coerência e com um ritmo próprio que oscila entre uma conotação tragicómica, mas que nunca ousa levar-se a sério, em que mesmo diante de um certo humor ácido nunca é permitido sorrir. Talvez por isso é que os seus filmes, uma vintena, entre as diversas curtas e documentários, e daqui excluímos as inúmeras curtas e documentários, todos dentro dos 90 minutos sacramentais, assemelham-se verdadeiramente à sorte dos tangos sempre presentes. Nesta sua regularidade emerge então esta rica coleção em que tudo, mas mesmo tudo, pode se algo de um humor sibilino. Uma viagem a essa estranheza finlandesa, mas com tanto do cinema americano, que tivemos ocasião de revisitar para a prometida entrevista. Um pouco como uma juke box.

Na verdade, é lendário o realizador finlandês e são tão lendárias como imprevisíveis as suas entrevistas. Razão pela qual viajámos para o Porto com um misto de expetativa e apreensão. Afinal de contas tivéramos uma entrevista marcada em San Sebastian, onde recebeu o prémio Fipresci do melhor filme desta associação de críticos, mas que acabaria cancelada. Era este o nosso lado da esperança. Seja como for, a espera no recuperado Cinema Trindade, onde O Outro Lado da Esperança (pode ler aqui a crítica) será exibido na Invicta, sequer foi demasiado prolongada.

Aki lá apareceu, de blusão desportivo vermelho, acompanhado pela mulher, por Américo Santos e Cristina Mota, da Nitrato Filmes, o programador, distribuidor e exibidor que teve a teimosia de recuperar o velho Trindade, bem como o amigo cineasta e produtor vimarenense, Rodrigo Areias. E quase de imediato fez sentir quais eram os seus dois problemas: Onde está o vinho?, tomou conta da maior ansiedade, embora a seguinte, os cigarros, esteja intimamente ligada. Sobretudo porque os seus dois cigarros eletrónicos estavam já praticamente no fim. Já lhe levo o vinho, sossega Cristina ao insaciável finlandês. Traga também o Luis Buñuel, replica ele, trocista, posso precisar da sua companhia… E aqui talvez seja melhor precisar que é precisamente este seu lado boémio acaba por exprimir a sua unicidade e até brilhantismo do seu trabalho.

O Outro Lado da Esperança

Na verdade, não foi preciso muito para perceber que a conversa sobre O Outro Lado da Esperança seguiria um formato aproximado a uma jam session, dada a sucessão de conotações musicais que foram surgindo. De resto, a proximidade musical pode mesmo ser aplicada ao seu cinema como um bloco, dadas as eternas repetições. Chamemos-lhe refrões. Apesar de se tratar de um filme sobre o refugiado sírio Khlaed (o estreante Sherman Haji), a má sorte da sua personagem acaba por rimar com essa imensa galeria dos quadros Kaurismaki, onde a tristeza se esconde em planos de belos fundos de cores primárias, sempre captados pela objetiva rigorosa do inevitável Timo Salminen.

E não será Khaled também O Homem Sem Passado (2002), Markku Peltola, que perde a memória depois de ser espancado por hooligans neonazis? De resto, um deles, Tom Wahlroos, regressa com um bastão semelhante para espancar Khaled neste novo filme. Claro que ele é também o menino refugiado africano de Le Havre (2011), mas também o casal desempregado de Luzes no Crepúsculo (2006), que já era o mesmo casal semi-desempregado de Nuvens Passageiras (1996). E não será também o desencantado e suicida Jean-Pierre Léaud em Contratei um Assassino ou a fabulosa Kati Outinen, atriz fétiche de Aki, como quase todos, na triste sorte de A Rapariga da Fábrica de Fósforos (1990)? E, porque não, a mesma Outinen, na deliciosa experiência de cinema mudo de Kaurismaki em Juha (1999)? Sim, é Khaled, mas é também, de certa maneira, Aki.

Tal coerência talvez só se veja no cinema de Howard Hawks. São todos versões de mim próprio, assumirá quando lhe perguntamos se não haverá um pouco de si nestas personagens. E talvez até seja ainda mais depurada esta noção de autor na política dos autores. Apesar de tudo Kaurismaki é também um maverick, no verdadeiro sentido. Pois sabemos o que esperar dos seus diálogos, uma vez que o lado mais satírico como que estilhaça qualquer veleidade de otimismo. É a Lei de Murphy levada à letra. Pois é na inocência que as suas personagens ganhar espessura.

Mas Kaurismaki é também o boémio, o Tavern Man, de Guimarães, a sua curta para Centro Histórico, que representou Guimarães capital da Cultura em Cannes. Aliás, Cannes alimenta também história e anedotas de Aki Kaurismaki. Como aquela que ocorre em 2002, quando Aki sobe ao palco do Grand Palais para receber o Grande Prémio do Júri, o segundo lugar, para O Homem Sem Passado, ele que até pensava receber a Palma de Ouro; portanto, ao passar pelo júri segreda algo ao ouvido do Presidente David Lynch, o que lhe causa uma cara de espanto. Dizem as más (ou boas) línguas que o terá interrogado com um who the hell are you? Sim, quem és tu Aki Kaurismaki?

 

 

E vamos então à entrevista, direta, tal e qual, com respostas que mais parecem tweets, o que motiva do entrevistador uma preparação para evitar quaisquer momentos de suspensão. Isto numa altura em que Aki vai testando os derradeiros bafos do seu par de cigarros eletrónicos, já falhos de nicotina. E ansioso pela chegada do vinho verde.

 

Vive exatamente há 20 anos em Viana. Pode dizer-se que essa é já a sua segunda casa?

Pode dizer-se que é mais ou menos a minha pátria. Adoro este país. Por isso estou aqui.

Estive no festival de San Sebastian e lembro-me de o ouvir dizer na cerimónia em que recebeu o Prémio FIPRESCI do Melhor Filme do Ano, que já não havia Europa. Acredita mesmo nisso?

Não há mais Europa? É uma pergunta complicada. É a pergunta mais complicada. O Albert Camus disse que se a Europa quer subsistir terá de se basear em pequenos estados. Antes existiam 300 estados só na Alemanha, como em França e outros lugares.

Mas hoje também temos a Catalunha que que ser independente. Acha que faz parte dessa desagregação da Europa?

Acho que todos devem ser livres, a menos que mantenham o seu moral e não perturbem os outros.

De certa forma é isso que acontece no seu filme, não acha?

Também sabemos que é sempre uma questão de dinheiro, de ligações económicas, e que a verdadeira liberdade é impossível. A anarquia seria uma solução, mas sem o dinheiro.

Se calhar já é tarde para a anarquia.

Se calhar é demasiado tarde para o dinheiro.

Pensa já na terceira parte de uma possível trilogia para O Outro Lado da Esperança?

O meu contrato era para a segunda parte. Mas nunca ouvi falar numa trilogia apenas com duas partes, por isso acho que terei de fazer uma terceira parte. Onde e quando, não sei ainda. Talvez no Uruguai.

Pode fazê-la aqui em Portugal.

No Uruguai. É mais distante da Finlândia do que Portugal.

Já tem algumas ideias a germinarem?

Acho que terá um homem e uma mulher. Com um final feliz.

Os seus filmes têm sempre um lado cómico.

Se as pessoas se rirem nos meus filmes têm de pagar mais um bilhete.

Acha que nesta sua mensagem do outro lado da esperança inclui também a possibilidade de todos sermos refugiados?

Com estas alterações climáticas seremos todos refugiados.

Especialmente quando o Sr. Trump tem muitas dúvidas sobre o aquecimento global…

O senhor Trump já não significa nada. É um idiota desnecessário.

Mas temos também a Sra. Le Pen, o Sr. Brexit…

Sim, os idiotas estão a juntar-se. Temos o Trump o Putain (com sotaque francês, penso que se engana de propósito). A questão é que já ninguém tem poder. It’s just a pityful game. Já ninguém quer mais nada a não ser enganar e obter um poder ridículo. Já não temos nenhum patrão.

Já não temos o outro lado da esperança, é isso?

Digamos que estou um pouco cético. Na verdade, muito cético, para ser honesto. Sobretudo, o meu ceticismo leva-me a perguntar o que aconteceu à nossa garrafa de vinho?

Exatamente (risos)… Já agora, o que acha da comida portuguesa e, claro, o nosso vinho?

(Entretanto, talvez se tenha perdido algo na tradução, é que em vez de falar da comida e bebida locais, Aki fala do Porto que perdeu e do Benfica e Sporting que perderam também. Oportunidade para aflorar o tema, altura em que o Sr. Kaurismaki confessa mesmo: sou portista. E está convicto que vai ser campeão).

Se lhe perguntasse qual foi a coisa mais importante que encontrou em Portugal, seria uma pergunta difícil? Pelo menos, algo que o faça ficar cá todo o inverno finlandês.

Sim, fico meio ano desde há 30 anos. Às vezes mais ainda. Venho aqui procurar o meu vinho, mas nunca o encontro…

Mas há sempre uma esperança.

Sim, mas nunca lá está…

Recordo também quando nos encontrámos em Roma, com Pedro Costa…

… E Victor Erice.

Sim, no Centro Histórico. Como tem sido a sua experiência e ligação com cinema português?

É uma ligação muito fraca. Conheço alguns realizadores e sou amigo de vários, mas o meu conhecimento sobre o cinema português é fraca. Prefiro os filmes em que a Amália canta, nos anos 30.

Podemos dizer que o fado está próximo do tango finlandês?

Sim, podemos dizer isso, porque nada está mais próximo do tango finlandês que o fado português. É como se fossemos irmãos ou irmãs. Ou soulmates. E são mesmo.

Mas a música nos seus filmes, que não é só o tango, mas também o Rockabilly, é quase uma espécie de jukebox, como se vê nos seus filmes?

A Jukebox está na minha cabeça. Eu lavo sempre a loiça em minha casa e a minha mulher cozinha. Nessa altura estou sempre a ouvir tango finlandês ou blues, mas sobretudo os blues Motown. É uma música que bate forte no meu coração. Nunca ouço jazz, porque não o consigo compreender. Respeito o jazz, mas não o compreendo. Acho-o limitado, de certa forma. Talvez a exceção seja o Thelonius Monk.

O que se passa com o jazz que não curte?

I dig it, mas não é bem para mim. É demasiado dandy. Não é suficientemente raggedy para a minha estrada. (Nesse preciso momento, o empregado tira a rolha da garrafa com um estalo da rolha que ecoa pelo átrio do Bingo em sinal de triunfo.)

Saude ou skol?

Saudje (com sotaque brasileiro).

(Percebe-se a alegria da chegada vínica que imprime um novo entusiasmo à conversa)

Pode dizer-se da presença da música nos seus filmes que parece influenciar o seu tipo de escrita?

Pode comparar a música dos meus filmes com o texto que escrevo. O meu texto e o filme estão muito próximo. No fundo, escrevo tangos que os meus atores interpretam. Comprei um gira-discos quando tinha apenas 10 anos e escutei um disco de Olavi Virta, que foi o maior cantor de canto finlandês de sempre. Ele era o nosso Carlos Gardel. Bloody hell, he was good. This is tango forever!

Poderá ter sido o blues e o tango que o ajudaram a encontrar o seu cinema?

Nada disso aconteceu. Apenas algo que me bateu na cabeça quando estava a dormir na sargeta (Aki ri-se). Fazer cinema não tem sido um prazer, mas algo que tem de se fazer.

Pode dizer-se que é um trabalho que faz como se fosse uma banda, para manter a comparação musical?

Sim, claro. Tenho sempre a mesma equipa. É uma banda. Vamos lá fazer um gig, que é o mesmo que dizer, vamos fazer um filme.

Será coincidência que o Timo Salminem viva também em Portugal, em Sintra? Teve algo a ver consigo?

Foi um acidente. Um dia ele perguntou-me se já tinha estado em Portugal. Eu perguntei porquê. Mas depois disse: ok, eu mudo-me para lá.

Assim mesmo?

Assim mesmo, Mudei-me. Ele já vivia cá há alguns anos.

E porquê Viana?

Era a única cidade que não vinha no mapa turístico. Mas eu guiei de norte a sul à procura. Vi tudo. Mas quando fui a Viana percebi. É isto. É perfeito para mim.

Quando guia, e guia muito, isso ajuda-o a ter inspiração para novos projetos?

Tenho as melhores ideias quando estou na casa de banho. Parece estúpido, mas é verdade.

E porque não voa?

Prefiro não voar. Você fuma? (Aki está de novo inquieto, depois de verificar os vazios cigarros eletrónicos).

Fez este ano 60 anos este ano. Alguma coisa mudou em si?

Sim, fiquei mais esperto.

Pode dizer-se que o AKi é também um pouco as várias personagens dos seus filmes?

Sim, eles são todos versões de mim próprio. Não muito próximas de mim, mas o suficiente.

Embora sejam todos heróis à sua maneira.

Essa é a diferença.

Existe algum cineasta que se sinta próximo? Esta é a típica pergunta cinéfila de críticos. Eu tenho as minhas ideias, pois acho que tem muito de Melville.

Se não tivesse dito Melville, eu diria. Mas digamos, Buñuel, Melville, Ozu, Kurosawa… Gosto muito também do Raoul Walsh, Robert Wise… Não é referido muitas vezes, mas é um mestre. E gosto do Robert Ryan. Mas não desse tipo chamado James Stewart. Esse direitista. Ok, ele consegia fazer cinema, mas o Rober Ryan sabia ser ator.

Sim, tinha aquele olhar dorido…

Sim, isso. Enquanto que o James Stewart só…

Sabe chorar bem…

Sabe chorar bem… (em coro) Eu costumava ser lavador de louça quando era mais criança. Mas ele nem sabe lavar os pratos…

O seu cinema tem também um lado social sempre presente. Quer falar disso?

Eu trabalhei em todo o lado, construção civil, fábricas de papel, correios, restaurantes. Em todo o lado.

Foi também foi crítico de cinema.

Um péssimo crítico.

Ajudou-o a compreender o lado de cá?

Para mim era tudo branco ou preto. Uma merda ou uma obra-prima! Achei que era injusto por isso desisti. Até porque nem sequer escrevia bem. Era um idiota.

Voltando ao início e à desagregação da Europa, queria perguntar-lhe o que pensa dos EFA (os Prémios do Cinema Europeu), pois penso que o seu filme será nomeado. Acha que pode responder ao cinema como demonstração da Europa?

Há muitas europas.

Pode o cinema ser uma boa resposta ao que os políticos não fazem?

Infelizmente, o cinema é apenas um brinquedo. No meu caso, é um brinquedo esquecido. Podemos comparar o cinema com a literatura. Um filme é como um livro, ou é bom ou mau. Mas tem a mesma origem. Se é bom é um prazer. Mas antes disso tem de ser bom.

O que acha das invenções do séc. XXI, como a nova comunicação social, as redes sociais, o streaming, a realidade virtual?… É tudo ficção científica, para si?

Prefiro morrer. Até o meu cigarro morreu. Até eu quase morri. Porque você não me arranja um cigarro? Nos meus últimos filmes, nos meus últimos 20 filmes, pensei que se fizesse alguém feliz isso não seria considerado um crime.

Qual é para si o seu filme mais importante?

Este último, O Outro Lado da Esperança. Porque não é entretenimento. As pessoas estão numa situação horrível. Estão a sofrer como o diabo. E eu tinha de fazer alguma coisa. Pode não ser o meu filme mais artístico, mas é seguramente o mais importante.

E o que é mais importante para si como realizador?

Quero acabar a minha carreira como realizador, porque quero ser um ser humano e ajudar aqueles que sofrem. Até já tentei imitar o estilo do Frank Underwood…

Obrigado por esta conversa.

My pleasure.

 

 

 

 

 

 

 

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