Quinta-feira, Abril 25, 2024
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O verão musical de Jacques Demy

Os Chapéus de Chuva de Cherburgo (1964) *****

As Donzelas de Rochefort (1967) *****

O verão aquece ao ritmo dos musicais encantados de Jacques Demy, com a reposição em cópia restaurada do Parapluies e das Demoiselles, pela Midas e para ver no Ideal. E se Demy até pode rimar com Demi (metade), então também podemos dizer que um filme será ao mesmo tempo o reverso do outro. Ainda que ambos sejam em grande medida parte da vida deste rapaz de Nantes.

De um lado, o feérico Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, como que a pintar de cores garridas a idade da inocência e a abafar a memória das guerras com diálogos cantados à chuva; do outro, e ao invés, a naturalidade da luz solar a rasgar os cenários e a sair para a rua celebrando a alegria e a liberdade de movimentos num evento de romaria itinerante. Pelo meio, o apego à sua terra, ao musical, às suas memórias. E Catherine Deneuve. Agnès Varda, a cara metade, companheira de viagem, de vida e de cinema, de mais de três décadas de Jacques Demy, haveria de fixar essa memória no tocante documentário biográfico Jacquot de Nantes. O seu cinema é tudo isso e é, em boa parte, este par de filmes, estes dois “demis”, que fazem este filme maravilhoso que é Jacques Demy.

O colorido do papel de parede da loja de guarda-chuvas contrasta com o loiro platina da cabeleira da luminosa Deneuve, aqui a dar os primeiros passos e quase a tornar-se na estrela internacional que seria pouco depois. Para esta celebração do musical made in Hollywood, Demy convocaria parte das memórias da sua infância, como a garagem do pai onde se passa parte da ação sempre com os deliciosos diálogos cantados de Demy, devidamente acompanhados pela música irresistível de Michel Legrand que dá cor ao romance em três atos entre Deneuve e Nino Castelnuovo tão bem captado pelo trabalho elegante da câmara de Jean Rabier. Os Chapéus de Chuva de Cherburgo representam uma obra máxima do cinema musical que trata temas sérios  de forma ligeira, como a guerra da Argélia ou até a gravidez fora do casamento, com a particularidade de não necessitar sequer de um happy ending.

Impulsionado pelo sucesso dos “guarda-chuvas”, Demy vai ainda mais longe na sua celebração do género, superando em As Donzelas de Rochefort o lado de operetta mais estático do anterior pelo desejo de trazer para a rua o movimento e a dança em cinemascope. Deneuve regressa ao lado da mana Françoise Dorléac para o mais célebre número musical do filme, em que celebram a alegria de viver e o facto de serem irmãs gémeas. E é aqui que nos apetece trautear nous sommes deux soeurs jumelles nées sous le signe des gémeaux… 

Ela que acabaria por falecer vítima de um acidente automóvel meses depois da estreia de Rochefort. O cast de luxo incluirá ainda Gene Kelly, na seu derradeiro musical, bem como Michel Piccoli, Daniele Darrieux ou George Chakiris (o Bernardo de West Side Story). Sem vergonha de referenciar os clássicos do género, de usar complexos (e fabulosos) movimentos de grua e de se ao mesmo tempo um filme tão simples, Demy transcende-se num musical pleno. E será talvez essa a maior valência, mesmo quando navega dentro do registo de género. Precisamente, aquilo que Damien Chazelle não conseguiu fazer com o musical desprovido de alma que é La La Land.

 

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