Quarta-feira, Abril 24, 2024
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KVIFF: Arábia | Crítica

Arábia, de João Dumans e Affonso Uchôa – Anoher View

A balada de um homem só

(Afinal, o último filme que vimos acaba por ser o melhor)

https://www.youtube.com/watch?v=1xHVn_upGdw

Arábia é daqueles filmes ancorado numa simplicidade terrena cuja narrativa se vai instalando lentamente em nós, como se de uma viagem se tratasse. E é quase à chegada que confirmamos a pequena maravilha quase épica em que se tornou. Aliás, essa premissa de viagem foi também o ponto de partida da dupla Affonso Uchôa e João Dumans. No nosso caso, acabou por ser também a viagem final do festival de Karlovy Vary, acabando por nos dar o momento final e também o mais conseguido de todos os filmes que vimos. E a expectativa não aumentou pelo facto de Arábia vir já assinalado desde Cannes, precisamente pelo programador do IndieLisboa, já depois de ter sido exibido em Roterdão e de em Portugal acabar por ser distinguido com uma menção honrosa, precisamente no Indie. Até porque só o decurso da viagem integral nos dará esse conforto final. Mas as viagens são assim, por vezes só à chegada temos condições de aceitar a sua própria dinâmica e o destino. Mesmo quando desconhecemos totalmente o itinerário, como era o nosso caso.

É precisamente esta a proposta de Arábia, uma espécie de road movie sobre o destino de um homem evocado em flash back e com recurso a voz off. Ou seja, de uma vez só, a cartilha de tudo quanto poderia correr mal. Só o carinho e o cuidado de contar a história de um trabalhador e, de certa forma, da sua classe, que arriscamos a entrar no terreno da singela obra-prima.

Mal inicia o filme, seguimos um garoto a andar de bicicleta na região montanhosa de Minas Gerais ao som do tema folk I’ll be Here in the Mornng, de Townes Van Zant, como que nos centrando no ritmo do filme e na dinâmica desse tempo que passa. Seguramente, muito ao lado de grande parte da oferta do cinema brasileiro, mesmo mantendo-nos no realismo dessa região industrial.

Esta é a viagem de um indivíduo que após cumprir uma pena de prisão por um furto de automóvel, decide abrir uma nova etapa na sua vida e afirmar-se pelo trabalho. E com a sua jornada acompanhamos também o momento de transformação desse país, da industrialização severa e as suas consequências. Por conseguinte, um filme de contornos necessariamente políticos e humanistas apresentando-os este mundo desigual.

Sucessivamente conhecemos os desafios de Cristiano (Aristides de Sousa), à medida que decidiu passá-los a escrito depois de iniciar um curso de teatro, embora só o venhamos a saber decorrida bem mais de metade do filme. Até ali, apenas percebemos esse percurso, mas que só se tornaria conhecido depois de um rapaz solitário, André (Murilo Caliari) descobrir as suas memórias após o acidente de trabalho do autor que o incapacita. E só quando o André principia a leitura dessas memórias surge finalmente no ecrã o título do filme, cerca de meia hora depois do início. A partir daí se desfilam os episódios da vida de Cristiano narrados pelo próprio. Sempre pelo caminho, a procura de trabalho, o convívio com os camaradas, a descoberta do amor, a tragédia e de novo a esperança. O recomeço do fim.

Talvez não surpreenda saber que João Dumans assinou o guião do muito curioso filme de Marília Rocha, A Cidade Onde Envelheço, exibido o ano passado no DocLisboa, sobre duas portuguesas emigradas no Brasil (Elizabete Francisco e Francisca Manuel) que discutem as suas semelhanças e diferenças, precisamente com a estreia, ainda não profissional, de Aristides de Sousa.

E Arábia? Na verdade, trata-se de uma anedota contada entre amigos. Mais importante será mesmo o momento, já no final, em que Aristides percebe a sua verdadeira condição. O resto que se segue já está fora d filme. Mas dentro e nós.

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