Sexta-feira, Setembro 22, 2023
InícioCríticasGlória: um ovni social entre Chaplin e Capra

Glória: um ovni social entre Chaplin e Capra

Gloria é daqueles filmes que vale bem mais do que o próximo blockbuster. Esta comédia muito negra de baixo orçamento assinado pela dupla Kristina Grozeva e Petar Valchanov, aqui na sua terceira longa em conjunto, assenta numa ideia simples demais, ainda que plena de implicações sociais e políticas com o condão de nos prender do início ao final. O facto de ser um dos poucos filmes búlgaros que chegam ao mercado internacional torna Glória ainda mais apetecível. O seu percurso foi iniciado o ano passado ao lado de O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues, e Correspondências, de Rita Azevedo Gomes, no concurso do Festival de Locarno, curiosamente, onde outro búlgaro (Godless, Ralitza Petrova) venceria o Leopardo de Ouro.

A descoberta ocasional de um saco cheio de dinheiro por parte de um trabalhador dos caminhos de ferro búlgaros serve de isco para passar em revista alguns dos tiques e pecados sociais, e não necessariamente exclusivos dos Balcãs, em que a fronteira da corrupção vive paredes meias com a oportunidade e o oportunismo da comunicação social faz o seu papel. Só que ao entregar este pequeno tesouro ao Estado, o reservado, espartano e gago Tzanko Petrov (Stefan Denolyobov, um ator já maduro, descoberto por esta dupla de cineastas) entra num circo em que todos querem brilhar, exceto o próprio. Gozado pelos pobres e olhado com sobranceria pelos outros, Tzanko é encarado como uma espécie de ovni social.

Na verdade, ele nem é o verdadeiro protagonista, já que grande parte da atenção repousa no papel da responsável pela comunicação do governo, a dominadora e multitask Julia (Margita Gosheva), numa permanente ginástica para agradar o ministro, gerir a sua equipa, o marido e a sua vontade em engravidar. No meio disto tudo, cria também um problema com Tzanko ao substituir-lhe o seu relógio de estimação por um novo, mas que se atrasava, como recompensa do seu feito heróico. É por aqui também que o guião, desenvolvido também por Grozeva e Valchanov, se enriquece embora sem nunca cair no lugar comum, não poupando sequer os media, quando o suposto jornalista de investigação acaba por revelar uma agenda não muito diversa dos ‘jornalismo amarelo’ que supostamente critica.

No momento em que a singularidade deste homem se coloca diante da máquina burocrática e política do sistema já tínhamos percebido que estávamos demasiado próximos desse formalismo kafkiano tão vincado, com a particularidade da narrativa nos colocar obstáculos pelo caminho ao nunca procurar adocicar o perfil deste herói involuntário, ao mesmo tempo que fornece uma imagem quase agradável da mulher de ação que se esgota no profissionalismo e se perde em relação às suas prioridades, deixando mesmo para o marido extremoso a responsabilidade da complexa inseminação artificial que lhes poderá dar um filho desejado.

O jogo dos realizadores é refrescante e assume de resto uma proximidade narrativa e estilística com os manos Coen de Fargo, ou até, se quisermos, um certo idealismo puro próximo do defendido por Frank Capra, mas onde nem sequer a tristeza involuntária de um Chaplin está ausente na marcante personagem deste “idiota social”. No entanto, é mesmo o final brutal e inesperado que acaba por colocar uma cerejinha no topo deste filme sobre a incerteza de um futuro que cresce em lume brando. Hilariante e brutal em doses semelhantes. Claramente, o filme a não perder numa semana de estreias que promete ser dominada por uma múmia digital.

  • Classificação

Resumo

Hilariante e brutal em doses semelhantes. Claramente, o filme a não perder numa semana de estreias que promete ser dominada por uma múmia digital.

RELATED ARTICLES

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Most Popular

Recent Comments