Sexta-feira, Abril 19, 2024
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Marin Karmitz: “Há uma crise mundial do cinema de autor”

 

Jean-Loup Passek, director do Museu de Cinema de Melgaço, foi homenageado pela Cinemateca Portuguesa, que recebeu na ocasião a presença de uma das figuras mais importantes do cinema francês dos últimos 50 anos, Marin Karmitz, realizador, produtor, distribuidor e exibidor. Quem não conhece o logotipo da sua companhia, a MK2? Num encontro muito agradável, na livraria da Cinemateca, Karmitz falou-nos da sua passagem pelo nosso país e da situação atual do cinema francês.

 

O Jean-Loup Passek apaixonou-se por Portugal, ao ponto de aqui instalar o seu museu de cinema. No seu caso, que contactos teve antes com o nosso país?

 

O meu primeiro encontro com Portugal foi assim. Eu tinha acabado de fazer um filme que se chamava “Coup Pour Coup”. Fui convidado para vir falar do filme, porque estreava numa sala de cinema. Era o Cunha Telles que o distribuía. E cheguei no dia da Revolução dos Cravos, pela qual me deixei levar. Era para ficar 24 horas, fiquei duas semanas, em que vivi momentos extraordinários, com pessoas extraordinárias. Para mim, foi um momento inesquecível. Achei tão magnífico que até fiz um filme. Fui ao hotel onde estavam jornalistas a jogar às cartas e disse-lhes que não podiam ficar ali e fui apresentá-los às pessoas que tinha encontrado. Tinham de sair dali, pegar nas câmaras e nas esferográficas e fazer qualquer coisa. Foi o que fiz. Com um jornalista do Libération e um outro do Nouvel Observateur, e dois repórteres da televisão alemã que tinham o equipamento, fiz um filme, que se chamou “Viva Portugal”. Mas esta é uma história antiga.

 

Há uma mais moderna?

 

Tenho uma paixão pessoal pela pintura, pelo desenho, pela fotografia. Fui convidado a ser Comissário de uma exposição que foi mostrada primeiro no Museu de Arte Moderna de Estrasburgo, e que se chamava “Silences”. E o director do Museu Berardo convidou-me para a trazer aqui. Passei aqui quinze dias a organizar essa exposição, que muitos jornais consideraram a melhor do ano. É uma segunda grande recordação. Fiquei muito satisfeito de o ter feito. E a terceira grande recordação é a descoberta neste momento da Cinemateca, que não conhecia.

 

No que diz respeito ao seu trabalho como produtor, distribuidor e exibidor, que relação tem mantido ao longo dos tempos com o cinema português?

 

Fiz poucas coisas. Distribuí em França um filme produzido pelo Paulo Branco, o “Dans la Ville Blanche”, do Alain Tanner. E fiz um filme do Paulo Rocha Nas minhas salas em França mostrámos vários filmes portugueses mas não conheço muito bem o cinema português.

 

Há dois ou três anos anunciou que ia deixar de produzir, em função do estado actual do cinema francês. Pode descrever um pouco essa situação?

 

Foi um trabalho longo e difícil, mas transmiti a MK2 aos meus filhos, porque eles tinham vontade de continuar. E para eles rapidamente se colocou a questão seguinte: onde é que estamos, em termos da situação económica do cinema francês. E demo-nos conta, face à dimensão da empresa, que estávamos a produzir e a distribuir em grande parte apenas para cobrir as despesas de funcionamento. Era uma espécie de corrida, para conseguir pagar os custos de funcionamento. E eu tenho um ódio enorme a todas as instituições que gastam entre 50 e 90%, em alguns casos, apenas nos seus custos de funcionamento. E o resto, muito pouco, na criação. Estamos num caminho muito mau.

 

A que se deve essa situação?

 

Estamos numa crise importante do cinema francês e mundial de autor. Temos em França metade, talvez mesmo um quarto, dos espectadores que tínhamos há alguns anos para um certo tipo de filmes. E se é assim em França, é ainda pior no estrangeiro. Deixou de haver o chamado segundo mercado. O primeiro mercado é a sala de cinema, o segundo mercado é o vídeo. Mas o DVD acabou. E havia ainda a televisão. Mas, um pouco por todo o lado na Europa, as televisões privadas ocuparam o espaço das televisões públicas, e estas também mudaram muito. Há a RAI, a WDR na Alemanha, o Channel Four. Em França também há a ARTE, mas que já não é de todo a mesma coisa. Todas se banalizaram, com produtos menos rigorosos e menos busca de novos valores. Esse mercado também desapareceu. Por isso é cada vez mais difícil fazer certos filmes e rentabilizá-los para fazer outros. Por exemplo, com o dinheiro que ganhei com dois filmes que produzi do Claude Chabrol, fiz dois filmes iranianos, um filme chinês, três filmes paquistaneses. Ele ficou muito contente e continuámos. Hoje isso já não é possível.

 

Foi por isso então que parou…

 

Os meus filhos decidiram parar a produção e a distribuição. O que fazemos então? Não vamos parar de fazer cinema. Fazemos então o que amamos. E como é que fazemos o que amamos, sem sermos comidos pelos custos da estrutura? Reforçámos a nossa estrutura de vendas no estrangeiro. Temos um catálogo muito importante, que faz parte da memória do cinema francês. Temos Chaplin, que não é francês, até Truffaut, passando por Bresson, Chabrol… Montámos uma estrutura que permita a jovens talentos de todo o mundo beneficiar dos nossos serviços de venda internacional. Mesmo melhor que a que os americanos oferecem às companhias americanas. É para nós uma forma de combate e de ajudar o cinema mundial. Mas é preciso ocupar-nos também dos filmes. Ajudá-los a existir. Senão, onde é que estão esses filmes? Ficam perdidos, não vão fazer-se. Por isso, participamos em cerca de seis filmes por ano, os filmes que nós amamos, através de contratos de venda mundial e de co-produções em que participamos, pondo o nosso dinheiro, para permitir que se façam ou que se terminem.

 

Quais são os últimos filmes em que participaram?

 

Dentro de dias vais estrear o último filme do Xavier Dolan, que nós co-produzimos. Tirando o primeiro filme, produzimos todos os outros do Xavier. É um realizador maravilhoso. Fizemos o filme da Naomi Kawase. Vai ser anunciado em breve que trabalhamos com o Jia Zhang-ke, que também não é o mais idiota dos realizadores. Também tivemos em competição em Veneza o novo filme do Stephane Brizé, que fez “A Lei do Mercado”. E há outros realizadores, que temos vontade de seguir ou de descobrir. É verdade que continuamos a fazer produção, mas não da mesma maneira.

 

Há uma solução, para essa situação catastrófica da economia do cinema francês?

 

O que nós fazemos agora é uma forma de a combater. Mas há outras. Por exemplo, com as salas. Nós temos salas em Paris, que são instrumentos para os filmes. Quanto mais reforçarmos a nossa relação com o espectador, mais força daremos a um certo tipo de cinema. Nas nossas salas, só passamos filmes em versão original. E temos um leque de programação muito largo. Mas nós achamos que não podemos fazer esse trabalho apenas em França, mas também no estrangeiro. Percebemos que era preciso sair das nossas fronteiras, porque em alguns locais tinha-se criado o deserto há algum tempo. Algumas coisas que se estavam a criar tinham sido postas de lado. Onde havia a possibilidade de as recuperar, era preciso fazê-lo.

 

Onde é que já se instalaram então?

 

Temos agora uma boa cadeia em Espanha. Neste momento somos o terceiro grupo em Espanha. Chama-se MK2 Ciné Sur. Estamos em Sevilha, em Cádiz, em Toledo. É o contrário de França, onde estamos apenas em Paris. Em Espanha não estamos nem em Madrid nem em Barcelona. Mas esperamos lá chegar em breve. E lá já começámos a introduzir, a pouco e pouco, a versão original. E já começa a dar frutos. Também já fizemos uma Semana do Cinema Europeu em Sevilha, onde temos a terceira sala mais importante de Espanha, com mais de um milhão de espectadores por ano. Fazemos sessões para crianças. Há todo um trabalho de educação. É um trabalho muito longo, mas já o começámos a fazer em Espanha. E estamos muito contentes com a reacção. Toda a gente nos dizia que os espanhóis e a versão original, era impossível.

 

E há ainda outras actividades do grupo?

 

Há uma coisa formidável que os meus filhos fazem, que é o cinema como festa. Em Paris organizam o que se chama Cinema Paradiso. Cinema e música, numa grande sala. Tem sido um sucesso. Pelo contrário, temos salas pequenas em museus. Temos uma sala no Grand Palais, duas salas no Museu de Tóquio e uma sala agora no Museu da Caça. No Grand Palais um grande Chefe fez os seus pratos em função dos filmes. Fazemos coisas muito diferentes.

 

Ao longo da sua carreira de produtor, teve ocasião de trabalhar com muitos grandes cineastas. Pode recordar um dos momentos mais agradáveis e pelo contrário uma das piores experiências que teve?

 

Tive muita sorte, porque trabalhei com alguns dos maiores cineastas europeus. Alguns americanos, como o Gus van Sant, ou ainda cineastas iranianos ou chineses. Um dos momentos mais desagradáveis foi o desaparecimento do Kieslowski. Tocou-me bastante. Tive alguma dificuldade em fazer filmes depois da morte dele. Consegui recuperar, mas sofri imenso. E agora, a morte do Kiarostami. Isso meteu mesmo um ponto final, para mim, na produção. Já não tenho vontade de fazer filmes. Fiquei muito marcado pela sua desaparição. Mas pelo meio tenho algumas más memórias, uma delas mesmo bastante desagradável, que é o filme que fiz com Kechiche, “Vénus Negra”. Foi um pesadelo absoluto. É um homem verdadeiramente sem qualidades.

 

Pode descrever um pouco mais em pormenor o Abbas Kiarostami?

 

Há duas descrições que se completam. Há a descrição mais pessoal e há depois o que representa o seu trabalho como realizador. Do ponto de vista pessoal, começámos a trabalhar em 1992. Encontrei no outro dia um contrato de 1992, de um filme que não se chegou a fazer. E depois começámos mesmo a trabalhar logo a seguir à Palma de Ouro dele. Pelo meio ele foi produzindo os seus próprios filmes. A relação que tive com ele sempre foi muito misteriosa. Parecida com a que tive com o Kieslowski. Ele falava comigo em inglês, e eu não falo inglês. E eu falava-lhe em francês, e ele apenas compreendia um pouco o francês, como eu compreendo um pouco o inglês. Mas desde o momento em que entrávamos num carro, começávamos a falar e a compreender-nos. É um mistério.

 

E como era a relação com o Kieslowski?

 

Com o Kieslowski dei a volta ao mundo. Desde o momento em que nos encontrássemos num bar a beber um whisky ou um copo de vinho começávamos a conversar. Mas com o Kiarostami era preciso que estivéssemos num carro. O que é algo da ordem do musical. Mais do que da palavra. Criámos um elo e falávamos por meias palavras. Não precisávamos das palavras todas. Conhecíamo-nos bem. Era como uma fraternidade. Pensávamos a mesma coisa sobre o cinema. Apesar das nossas diferenças. Não vínhamos do mesmo país, não tivemos a mesma educação. O Kieslowski era cristão, o Kiarostami era muçulmano, eu sou judeu. Mas funcionava muito bem, porque nenhum de nós era religioso. A presença do Kiarostami faz-me imensa falta.

 

E no plano profissional?

 

Para mim, era o maior cineasta do mundo, na actualidade. É o único que conseguiu responder à questão: o que é o cinema moderno? Uma questão difícil e que poucos cineastas se colocam. O que fazer com o cinema: Como não fazer o que os outros já fizeram? Partir do passado para criar coisas novas. O que é o cinema, no fundo. E ele deu respostas. Através dos seus filmes, e não só. Através dos seus filmes, das suas fotografias, dos seus vídeos. O que se chama os seus pequenos filmes, por vezes com dois ou três minutos. Mas que são tão importantes como os outros. São pequenos poemas. Como um escritor que escreve poemas, contos, romances ou artigos. No plano do cinema não conheço ninguém como ele na actualidade. E pessoas como o Scorsese pensam o mesmo.

 

No início da carreira começou por realizar filmes muito empenhados politicamente. Mas o mundo evoluiu de uma forma que seguramente não desejava. Como é que vive essa frustração?

 

Muitos de nós sentimos, num determinado momento, que tínhamos a capacidade de pensar o mundo de uma forma diferente. E fazer coisas diferentes. Em França, entre 1968 e 1973 passaram-se muitas coisas. E não só em França. Mas foi em França que se viu aparecer jornais novos, como o Libération, uma relação diferente entre filósofos e pintores, como Foucaut e Sartre e o que chamámos de pintores da figuração narrativa. E sobretudo muitos Comités de Acção, que lutaram por coisas tão fundamentais como o direitos das mulheres ao aborto, o direito de existência dos homossexuais, o direito de se ser tratado correctamente numa prisão, a psiquiatria e a anti-psiquiatria, o direito dos emigrantes, muito importante, os direitos das mulheres nas fábricas. E muitas outras coisas, que originavam comités de acção ou comités de luta. As coisas mexiam. Em paralelo, houve o fim da guerra do Vietname, Portugal, o Chile e alguns outros acontecimentos no mundo. Estávamos num momento de reflexão política e de acção política. O que me perturba imenso neste momento, vou tentar resumi-lo de forma brutal, O meu primeiro filme data de 1967, antes portanto de Maio de 68. O primeiro título do filme, que depois mudei, era “Viver de Pé” Este inverno, vi uma coisa a que se chamou Noite de Pé. Para mim, diz tudo. A diferença está aí. E era o quê? Uma espécie de palavras confusas que não tinha nada a ver com o que nós queríamos, que era o direito à palavra, dar a palavra aos emigrantes, às mulheres. Lembro-me de Sartre, que conseguimos esconder na parte de trás de uma camioneta, para o fazer entrar na fábrica da Renault, onde trabalhavam os emigrantes. Foi um acto simbólico, mas importante. Hoje, estamos muito longe de qualquer coisa do género. Estamos numa situação de guerra, com um bando de loucos, mas que dão origem a uma terrível confusão do pensamento. Há um oportunismo quando se diz para não se ser anti-muçulmano, para dar o direito a usar o véu ou o burkini. Mas se eu for com a minha mulher ao Irão e ela não se cobrir, vai para a prisão. O que é o direito à liberdade, face a pessoas que estão na provocação permanente? Eu faço parte das pessoas que já não suportam toda essa demagogia progressista. Não quer dizer nada, para mim. Vivemos num momento de confusão terrível. Do que aconteceu naquela praça, não se reteve nada, nem uma única palavra de ordem. A palavra é preciosa, é preciso dar-lhe força. A minha reacção é brutal, porque fico triste de ver isto.

 

Quando olhamos para si, estamos perante 50 anos de cinema, quase metade da sua história. O que pensa que vai ser o futuro do cinema?

 

O futuro depende do que fazemos no presente. Estamos todos envolvidos em fazer qualquer coisa. Ou de o destruir. Acho que é fundamental desenvolver ao máximo a educação pela imagem nas escolas. É preciso ensinar a decriptar uma imagem, a ler uma imagem. Como aprendemos a ler e a amar os livros. Mas nãos e faz nada. Nós fazíamos, com os cineclubes e muitas emissões televisivas. O resultado do plano Vigipirate, contra o terrorismo em França, faz com que já nem se levem os estudantes em grupo às salas de cinema. Detesto que há anos que nos metam num clima de medo do terrorismo. Já chega. Baixámos os braços em relação a esse trabalho que tem de ser feito em todos os países do mundo. É um trabalho que tem de ser feito nas escolas, nas salas, nas televisões. E pode ser feito de uma forma muito divertida. Nós chegámos a dar cursos de filosofia nas nossas salas. As salas de cinema podem servir para outras coisas, além do cinema. Pode fazer-se tudo: ler poemas, tocar música, comer, tudo é possível. É preciso fazer esse trabalho. É preciso dar aos nossos miúdos bons livros para ler, bons filmes para ver. E informações, pela internet ou pela imprensa, que sejam convenientes. A situação a imprensa é catastrófica, em França. Sei que a imprensa mudou, não vou chorar em relação ao passado. Mas não me posso contentar com as redes sociais para levar as pessoas ao cinema. Já não há crítica de cinema. Precisamos de instrumentos de crítica. Quando fiz a escola de cinema tive como professor o Jean-Louis Bory, um crítico de cinema do Nouvel Observateur. Era inacreditável, o desejo que nos transmitia de ir ao cinema. Escrevia muito bem, quando defendia um filme íamos todos ver, era m entusiasta. Hoje, na maioria dos jornais franceses, gosta-se de tudo

 

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