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Elia Suleiman: “Tenho curiosidade para ver como reagem à minha ‘palestinização do mundo’” 

O Paraíso, Provavelmente, realizado e interpretado por Elia Suleiman, foi um dos grandes filmes do festival de Cannes do ano passado, e que agora chega, finalmente, às nossas salas. Esta entrevista, publicada no esquerda.net (a 16 de junho de 2019), diz bastante do mundo em que vivemos.

Elia Suleiman entra uma vez mais no cinema para compor este palestino (ES) cada vez mais pasmado com aquilo que entende por “palestinização do mundo”. Num filme quase sem diálogos, ES sai da sua terra e vai para Paris onde observa a ‘coreografia’ da moda e da globalização; depois nos Estados Unidos para comprovar uma espécie de cultura ‘fast food’ de armamento. Mas até se espanta com o fervor dos próprios conterrâneos em defender aquilo que é seu. Apesar do seu tom burlesco, num tom que sublinha as tais coreografias, foi um dos filmes que marcou a edição do ano passado do festival de Cannes e que mais disse sobre o mundo em que vivemos – e quase sem usar palavras. Foi, por isso mesmo, a escolha do júri da crítica internacional (FIPRESCI), em que participamos.

O seu particular sentido de humor é um sinal de otimismo ou uma forma de esconder o pessimismo? Acredita que o problema da Palestina poderá ser resolvido durante a nossa vida? 

Eu não escondo o meu pessimismo. Acho até que é bastante explícito no filme. Acho que este é um filme para resolver questões sobre o andamento do mundo. Esta personagem sente-se desterrada, mas acaba por perceber que outras nações são também estados de exceção. Portanto, penso que este filme pretende informar – se é que informa – sobre este estado de coisas. E sobre o estado psicológico em que vivemos. Não apenas sobre as multinacionais e os governos beras. Reflete também sobre como podemos reinventar-nos de uma forma mais poética e viver de forma mais fraternal. Este espaço de poética tem diminuído dramaticamente. Talvez este filme possa ajudar a sair deste estado de desespero.

E de que forma?

Pode questionar o que podemos fazer, se é que podemos fazer. Se não for tarde de mais. Mas também pode ajudar a não ficarmos tão alienados. Acredito que os indivíduos de todo o mundo vivem de uma forma ou outra estas questões sem transcender esse lado profundo de encantamento pessoal. O cinema pode fazer isso. Isto se funcionar. Não vou dizer que vamos todos ser ativistas. Mas podemos tentar viver de forma mais harmoniosa com os nossos vizinhos.

Talvez começar a olhar primeiro para nós antes de julgar os outros…

É precisamente isso. Absolutamente. Há muito tempo em master class perguntavam-me como nós palestinianos podíamos tentar compreender o que se passa? Eu respondia: “tens de gostar mais de ti, tenta compreender-te mais e tentar ser mais compreensivo”. Para mim é uma questão de amizade de uma forma mais profunda. Acho que viver mais saudáveis connosco é uma forma de viver melhor com os outros.

Acha que estamos agora mais alienados que os nossos pais e avós?

Não posso julgar isso historicamente. Imagine que vive num país europeu durante a 2ª Guerra Mundial e é perseguido por uma estranha força hostil. Não consigo imaginar o que sentiria se estivesse escondido numa casa em podia ser apanhado e enviado para um campo de concentração. Quem somos nós para medir o trauma desses momentos? Imaginemos apenas o trauma de sermos traídos, sermos denunciados. Não consigo julgar, mas não é assim tão longe dos traumas das grandes guerras.

E hoje não podemos sentir isso também, ainda de que uma outra forma?

Possivelmente para além das duas grandes guerras, os conflitos de hoje podem ter-nos dado algo semelhante ao menos doloroso da Primeira ou da 2ª Guerra Mundial. Mas este é um momento que tememos. Isso eu tenho a certeza. Há seguramente alguma coisa pela qual nos deveremos levantar e lutar por ela. Mas não sou um ativista, não sei exatamente o que e como isso se poderá fazer. Apenas posso levantar essa questão. Tal como faço nos filmes, através do burlesco e do coreográfico.

Tocou precisamente na palavra que ia utilizar – a coreografia. Parece-me que o seu filme é uma longa coreografia, uma coreografia, ou várias, sobre o que se passa no mundo?

Sabe, eu vivi em todos estes lugares. Como vê, não uso muitos diálogos. Nos meus filmes não gosto muito de pronunciar as coisas. Gosto que algo sobressaia disso como um significado positivo. Não apenas um significado seco. Fazer estes quadros é uma forma divertida da possibilidade de me tornar numa pessoa melhor.

Do qual se sente mais próximo: de Ionesco ou de Brecht?
Sinto-me mais próximo de mim mesmo. O que posso dizer é de quem gosto. Por exemplo, um dos cineastas que mais gosto é o Tsai Ming Lian. Mas também o Roy Andersson, há alguns mais. Os primeiros que me inspiraram fora, Ozu e Bresson. Mas depois quem mais me tornou confidente foi o Hou Hsiao Hsein. Não o Jacques Tati ou Buster Keaton, apenas em caso de você dizer que eu me pareço com eles…

Na verdade, há a tendência de fazer essa comparação.

Quando comecei a fazer cinema acabei por me aperceber que faziam essa comparação. É claro que adoro e vejo regularmente os filmes deles. Não para me inspirar, mais como forma de adoração. Mas acho estranho que tantas pessoas no mundo tenham uma forma semelhante de encarar as coisas.

Como acha que será a relação do público palestiniano quando vir o seu filme?

Tenho muita curiosidade pois será a primeira vez que veem um filme meu fora da Palestina, tenho curiosidade para ver como reagem a minha “palestinização do mundo”. Há agora uma nova geração que vemos no final do filme. Algo que eu gostaria de ser, mas já não consigo. São ativistas que tem uma sensação de estar em conjunto. Uma energia que lhes dá muita força.

O seu último filme foi feito há 10 anos. A resposta por ter demorado tanto está na resposta que dá no próprio filme ao produtor francês? 

Só quero fazer um filme apenas quando sinto que preciso mesmo de o fazer. E que entendo que é necessário fazê-lo. Para além disso, o financiamento dos filmes é algo terrível. Só isso leva vários anos. No meu caso, quatro ou cinco anos. Depois para pintar um quadro como estes tenho de vivê-lo, tento fazer sketches. É algo que demora muito tempo.

Até que ponto a personagem que interpreta é uma amalgama de ideias ou quanto é próxima de si próprio?

Sou bastante próximo desta personagem. Em todos os filmes. Mesmo a estranheza na personagem é algo que sinto profundamente, embora não o mostre, de forma a ter um comportamento social mais aceitável. Não sou tão narcisista. O resto é interpretar e manter um certo ritmo, afundarmo-nos com essa personagem. Mas lembro-me de olhar para o espelho e perguntar: “como é que esta figura vai representar? Como se vai comportar?” Quando comecei a fazer gestos, bastante ridículos por sinal, sobretudo quando usamos sempre o mesmo ator, a primeira coisa que pensei foi que o cabelo branco não me poderia dar um falso senso de sabedoria.

Pensa que a falta de palavras podem ter um significado maior?

Diferentes realizadores usam meios diferentes. O meu cinema é apenas aquilo que faço naturalmente e de forma fluida, sendo económico em termos de linguagem. O meu medo é que existem pequenos buracos em que passe mais informação. Isso é que não gosto, que existam elementos que sirvam de indicadores para o que se quer dizer. Por isso, quando existem diálogos pretendo que sejam monólogos para que se mantenha essa falta de informação. Depois estamos a falar de cinema, temos de maximizar a energia em contar através da imagem e não a partir de um centro. Assim reduz-se o poder do cinema. Não acredito que as palavras acrescentem, algo.

A religião é um tópico bastante sensível. No seu filme abre com aquela cena de representação religiosa. Pode explicar o que significa, o que quis dizer com ela?

Não há significado, é apenas uma espécie de abertura de um filme série B…

 

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Risos…

É como em Intervenção Divina, o Pai Natal é esfaqueado no início do filme. Apenas quis ter essa abertura tipo série B antes dos créditos. A história do pai natal foi algo que eu ouvir quando estava a fazer o filme anterior. Em Nazaré, e não apenas em Nazaré, ortodoxos gregos, mas não só, começaram com essa ideia. Eles precisam de abrir a porta para o padre entrar. É uma posta pesada, em que se diz abram as portas do céu. De dentro abrem a porta e a procissão entra. Mas estes tipos ficaram lá dentro a beber Arak e ficaram bêbedos. A primeira vez aconteceu mesmo, mas na segunda tornou-se num ritual. Pediam para abrir a porta e eles não abriam. Pelo menos não abriam logo. Entretanto percebi que isso aconteceu também no Líbano, tinham um ritual semelhante. Achei que seria uma forma divertida de iniciar os filmes.

 

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