Quinta-feira, Abril 25, 2024
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Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt desmontam “Diamantino”

 “Queremos que o Diamantino seja um mito”

Acompanhámos a estreia de Diamantino onde tudo começou. Ou seja, no festival de Cannes, há quase um ano. Foi aí que descobrimos o filme da dupla Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, na Semana da Crítica, onde acabou por vencer mesmo o prémio principal daquela secção paralela do festival. Chega agora a vez do filme testar o público nas salas de cinema e deste se defrontar com a personagem de Diamantino, o tal mega astro da bola que acaba enredado num complot que expõe alguns dos vícios de um país populista, nacionalista e com pretensões imperialistas. Afinal de contas, o sinal dos tempos. Aqui fica a nossa conversa pouco depois da apoteótica estreia mundial, onde Charles Tesson, o diretor da Semana da Crítica se mostrou rendido ao filme do astro português.

Começo por si, Daniel: de que forma esta realidade tão tipicamente portuguesa se integrou na sua colaboração com o Gabriel?

Daniel Schmidt – Na verdade, esta realidade não me é muito próxima, mas vim a Portugal umas vinte vezes. Digamos que foi  através da experiência de conhecer o Gabriel e de termos os dois trabalhado e feito filmes também no meu país.

Gabriel Abrantes – Mas o Daniel viveu em Portugal durante dois anos, portanto é quase português…

Dois anos é muito tempo. E já fala bem português?

DT – Não… (responde em português) Mas adoro filmar em Portugal. Queríamos fazer um filme em Portugal e abordar de forma abrangente a cultura pop, bem como as crises do século XXI. A ideia era localizar isso em Hollywood ou outro lugar, abordando ainda os reality showsda tv, os Kardashians… Quando começámos a olhar para Portugal pensámos logo no Carloto Cota que era um ator com quem queríamos trabalhar e chegámos esta ideia da personagem do Diamantino. Para mim, pessoalmente, foi um projeto muito interessante, desde logo por incluir diversos elementos portugueses, embora com implicações europeias e globais.

GA – Usámos Portugal como um ‘stand in’ para coisas que não são muito portuguesas. Queríamos fazer um filme sobre Portugal, mas também sobre a Europa, mas também os EUA, o crescimento da extrema direita, mesmo que em Portugal não tenhamos movimentos tão expressivos como em França, Polónia ou Grécia ou mesmo o Reino Unido, os Estados Unidos ou a Hungria. Então usámos Portugal para falar sobre a Europa. O que nos interessa é abordar um futuro distópico, onde Portugal mudou um pouco. Adotou agora a bandeira monárquica, tal como a seleção nacional. Existe um movimento de extrema direita que quer construir um muro. É uma espécie de Jogos da Fome/Hunger Games em Portugal.

Uma aproximação bem negra do futuro. Está mesmo pessimista?

GA – Acho que estamos com bastante medo. Quando vemos o Trump ser eleito temos de ficar pessimistas. Há quem questione se o filme é sincero ou não. Eu acho que é bastante sincero em dois pontos de vista: o que pensamos sobre a crise política atual, com o crescimento da extrema direita, a crise dos refugiados; do outro lado, a personagem do Diamantino. Uma personagem que queremos que o público goste, tal como nós gostamos dela.

Lembro-me de falarmos em Berlim (em Janeiro de 2017) quando apresentou a sua curta Os Humores Artificiais nos prémios do Cinema Europeu. E falámos sobre este projeto e lembro-me de descrever esta criatura como um semi-deus e de criar esta personagem como um…

GA – É uma espécie de um Candide

Sim, Michelangelo. Mas como se aproximou deste figurino de jogador de futebol que temos agora?

GA – Queríamos fazer um filme sobre Portugal e sobre uma estrela internacional. Podia ser de cinema de televisão. Mas diante da combinação de Portugal e de super estrela chegou-nos esta ideia do Diamantino, uma estrela do futebol. E, para nós, o Carloto fez imenso sentido. Percebemos como ele funcionaria perfeitamente na personagem.

Acho que ele é muito mais do que credível.

GA – Para além disso tinha a idade certa. Tem a mesma idade, 34 anos. E na altura em da carreira em que pensa em retirar-se. Era esse o drama que queríamos escrever. A queda de um ícone do futebol, a sua solidão.

Gabriel Abrantes

De onde veio esta ideia?

GA – Tínhamos lido um texto sobre a Tracy Austin, um estrela do ténis feminino americano durante os anos 70 e 80. O David Foster Wallace analisou a biografia dela porque queria saber o segredo dos genes dela. Só que a biografia dela começa e acaba com banalidades, como “adoro o ténis e adoro, minha família e adoro os meus colegas de equipa”. De certa forma, algo muito vazio. O texto do Wallace chama-se “Como a Tracy Austin partiu o meu coração”. Diz que ela o dececionou por não ser nenhum génio, e por ser muito simples e banal. Mas também que este lado banal dela é que a torna tão boa naquilo que faz. Na verdade, foi por aí que começou também o Diamantino. Sobre alguém que era um génio mas totalmente incapaz em qualquer outro aspecto da vida; no amor, na política, na forma como lida com a família. No fundo com toda a sua ingenuidade, tal como ele diz no filme que tem muito pouca informação do que se passa no outro lado do mundo. Também achámos que esse era um elemento muito interessante sobre esta personalidade que por vezes se comporta como uma criança, um bebé, ainda que no corpo de um super-herói.

Pergunta básica para os dois: como se desenvolver o vosso trabalho em conjunto, e sobretudo, de que forma de divide e complementa?

DS – Basicamente, partilhamos todos os papéis envolvidos neste processo. Por exemplo, cada um escreve uma cena, ou um faz a montagem de uma parte e um de outra; ou ainda fala com um ator. Por vezes trabalhamos juntos ao mesmo tempo, mas muitas vezes trocamos ideias, mas funciona, talvez por partilharmos a mesma sensibilidade e até sentido de humor.

GA – Na verdade, partilhamos mesmo o sentido de humor, mas também muitas referências cinemáticas. Por vezes temos mesmo de nos refrear para perceber se faz sentido no filme.

DS – É uma forma de encontrar o tal equilíbrio, a voz certa.

GA – Mas partilhamos também os riscos. O Daniel força-me correr mais riscos do sue imaginaria, mas eu faço o mesmo também com ele. Como o caso dos cachorrinhos. Essa era uma ideia que queria alguma resistência pessoal a incluir num filme meu se trabalhasse sozinho. Mas acabámos por visualizar a cena em conjunto e perceber o que mostrar.

E de onde veio essa ideia genial que acaba por afetar o filme todo?

GA – Foi um choque de inspiração. Tanto o Daniel como eu adoramos animais e queríamos que o Tino gostasse também. Esse seria o seu mundo recatado e visionário. Então propus os cachorrinhos ao Daniel e ele achou a ideia muito divertida. Isso deu-nos a confiança para o fazer. Mas isso á algo que fazemos com frequência nos guiões que escrevo, partilhamos muito estas ideias. No set o que talvez tome mais responsabilidade é na produção. Mas quando lidamos com atores, montagem, na escrita, tudo isso é bastante partilhado.

DS – Até porque escrevemos em inglês e só depois traduzimos para português. Para além disso, apesar de sermos muito intuitivos, o Gabe é capaz de ser muito rápido, espontâneo e ousado na sua vontade de correr riscos. E tem um metabolismo rápido em que é capaz de me desafiar para montar o filme num mês. Talvez por isso é que já fez umas vinte e cinco curtas e eu bem menos. Eu é que o pressionei a demorar mais tempo na montagem.

GA – Sim, quando eu estou forte ele está fraco e quando estou fraco é ele que está forte.

De que forma esse número impressionante de curtas acaba por moldar a forma como encara mesmo esta sua primeira curta? É que de certa forma parece uma continuação das suas curtas.

DS – Na verdade consumimos muito cinema e da forma mais variada, desde filmes mudos, youtube, memos, etc. Isso ajuda-nos por vezes a encarar certos pormenores de certos filmes que combinamos ou fazemos de outra forma.

GA – Frequentemente, nas nossas curtas existe uma relação muito distante com os atores, muito inspirados no trabalho do Bresson, ele que chama ‘modelos’ aos seus atores. Mas nesta longa queríamos o oposto, ter uma relação muito próxima com o nosso protagonista. Desde logo pelos seus falhanços. Essa é capaz de ser a diferença principal das curtas.

DS – De certa forma, ainda estamos no início das nossas carreiras, mas algumas pessoas que virão ver Diamantinoconhecem alguns dos nossos trabalhos anteriores, e poderão pensar em algo entre o sublime, disparatado, mas satírico também poderão interrogar-se se irá funcionar como uma longa, mas a surpresa que lhes oferecemos é que não podem esperar a surpresas que os aguarda. Já ouvimos dizer que o Diamantino lhes fez chorar. Embora essas lágrimas também possam ser uma surpresa.

Talvez seja a hora de quebrar essa ‘parece’ e falar nesta personagem que se calhar é baseada em alguém que conhecemos bem. Como foi esse percurso de ir tão longe e de procurar elementos que acabam por combinar tão bem com o ‘boneco final?

GA – O que quisemos fazer foi uma paródia de um ícone famoso, de um ícone português. Para nós esse lado de paródia era muito importante. O cliché do corpo, dos brincos de diamante, do corpo totalmente depilado, do cabelo, sobrancelhas. No fundo, uma grande atenção sobre o corpo, algo que existe bastante no mundo do futebol. Para a construção da personagem tínhamos referências muito precisas. Um deles é Lance Armstrong e do seu escândalo de doping, a entrevista com a Manuela Moura Guedes, a Gieselle, que é uma aproximação à entrevista com a Oprah. Ela começa a entrevista dela da mesma forma: “quero apenas ouvir ‘sins’ e ‘nãos’”. Inspirou-nos ainda o documentário sobre o Mike Tyson, onde mostra o seu lado interior e solitário e mais dócil. E ainda o documentário sobre o Zidane, em que o Douglas Gordon e o Philippe Parreno mostram 54 câmaras apenas sobre o Zidane, acabando por revelar a sua solidão. É precisamente no filme sobre o Zidane que se baseiam as primeiras imagens do filme, em que o Diamantino entra em campo com o olhar tenso.

DS – É claro quer olhamos também para o perfil dramático de finais de carreira.

No fundo, algo que é bastante português. Esse lado das derrotas, como um imenso ‘Non’, na linha do que fez Manoel de Oliveira. Acha que esse lado derrotista e sebastiânico pode ser também uma abordagem?

GA – É claro que nos permite também olhar para a história de Portugal e os seus mitos, é claro que o sebastianismo está presente no filme. Como o Filipe Vargas no papel de Helena Guerra dirige Diamantino no spot publicitário e o incentiva dizendo que e o D. Sebastião, o rei português mais grandioso. Ele é a nossa Leni Riefenstahl. Aliás é por isso que se chama Helena. Sendo que o apelido de Diamantino é Matamouros e a bandeira é a da monarquia. Por esse lado podemos ter essa proximidade com o entendimento da História que Oliveira tinha. Mas para nós esse lado do “saudadismo” é encarado como uma paródia e comparado aqui ao nacionalismo. Mas é curioso como ele acabou também por me parodiar nessa personagem. Sobretudo quando grita com voz estridente “Acção!!”, um pouco como eu faço.

(Risos…) O papel das gémeas Anabela e Margarida Moreira é genial. Quem não as conhecer irá pensar que se trata de CGI.

GA – Sim, muita gente falou nisso. E a forma como entraram no sotaque açoriano. Um sotaque que foi sugerido pelo Carloto (Cotta) e pelo seu treinador de voz.

Tal como o pai delas, Chico Chapas que começa a tornar-se numa estrela maior do cinema português.

GA – Claro que o Chico veio das Mil e Uma Noites, do Miguel Gomes. Uma personagem magnífica. Ele é o único ator não profissional (embora agora já o seja). Algo que daria ao Diamantino uma relação mais familiar, mais quente.

A equipa de Diamantino em Cannes

É interessante a substituição da madeira pelos Açores…

Sim, foi um desvio. Achámos que poderia ser um paralelo divertido. Para além de que o sotaque açoriano confere uma musicalidade muito bonita.

No entanto, há uma personagem que acaba por ser o “elefante na sala”, mas que não iremos mencionar o nome. A ideia é jogar um pouco também com esta dinâmica, com o quase real que é ficção?

Tentamos não fazer referências diretas para qualquer pessoa real, desde logo porque queremos que o Diamantino seja um mito. Se se tornar demasiado real perde essa qualidade.

Que tipo de reação esperam para além do filme? Nesse tal sentido em que pode espelhar a realidade? Receiam que possa ser levado de uma forma demasiado pessoal?

GA – É claro que temos o ‘disclaimer’ no início que indica que se trata de uma obra de ficção.

E que nenhum animal foi maltratado (risos)….

GA – Exacto. Ou que nenhuma alteração genética foi produzida. Até porque o Daniel e eu estamos obcecados por ficção. E como a ficção se situa num outro estrato da realidade.

Mesmo que toda a gente esteja a pensar na mesma pessoa…

GA – Mas não deixa de ser uma paródia.

DS- Acho que há uma paródia, embora acaba por ser, talvez na imprensa um dado mais exposto, desde logo como uma forma de apresentar o filme. Mas à medida que vemos o filme percebemos como essa aparente sátira a um jogador de futebol famoso não dura mais do que que quinze minutos e se transforma no retrato bem mais complexo.

GA – O nosso referencial foi a série de animação South Park, em que se parodiou o Kayne West, o Donald Trump, o Michael Jackson, a Britney Spears… Mas acabam por os levar a um nível tão distante. No fim, é uma questão de personalidade, quem consegue abstrair-se dessa ideia e quem não consegue. O filme pretende fazer uma paródia a clichés de uma estrela de futebol, mas não um ataque a quem quer que seja.

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