Sexta-feira, Abril 19, 2024
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Há um poema visual entre O Acossado e O Livro de Imagem

Numa altura em que O Livro de Imagem (assim mesmo, no singular) choca alguns, faz outros coçar a cabeça e rende outros tantos, valerá a pena aproximar este último JLG do seu ‘opus’, O Acossado. Entre o primeiro e o último. Será que o opus elimina o topus?, como o título do tal ciclo da Cinemateca? Ainda que, naturalmente, sem a vontade que este seja o derradeiro. Quanto mais não seja para peceber, indagar, se mudou assim tanto a atitude de encarar o cinema como ‘território de experimentação’. Não se dizia que bastava ter uma rapariga e uma pistola para termos um filme?

Quando pensamos, por exemplo, na incrível cena inicial em que Jean-Paul Belmondo, e através dele aquele poema cinematográfico chamado Michel Poicard, sublinha-se a ruptura com o cinema clássico de Hollywood, apesar de ser habitado por toda a memória do cinema, ao mesmo tempo que abre a janela para essa  magnífica arte da apropriação com a história. Hoje, quando Godard manipula os materiais fílimcos, quais fragmentos de imagens, quase usando material que parece de ‘rascunho’, tal é tão deplorável a qualidade (intencional?) da imagens, será que não exerce uma atitude ainda mais radical? Desde logo por colar estes pedaços de imagem numa História Universal bem mais lata. Claro com as guerras, que fizeram com que o cinema se desprendesse do mero entretenimento e fizesse as personagens olharem para si mesmas. E assim trazer a modernidade ao cinema.

Este é o filme em que Godard se vinga de Bogart e Bacall, filmando Jean Seberg a saltitar na passadeira, ou Belmondo a tombar na passadeira na cena final depois dela o trair. Sim, Seberg gostava de ser Ingrid Bergman. Verdadeiramente “dégeulasse” como diria Poicard. Sim, aqui não há spoilers, porque este é um filme que merece ser triturado e digerido. Tal qual como Godard faz a triturar filmes no Livro de Imagem. Por isso mesmo é um clássico, pois poder ser repetido e reinventado. Foi isso o que Godard fez com os clássicos, foi isso que a nouvelle vague fez com os paradigmas do cinema americano. Tal como Paulo Rocha fez com o o ‘establishment’ dos anos 50 em Verdes Anos.

Nessa sequência inicial percebemos também como a montagem sugere uma nova linguagem, como se bastasse a si própria, quase em jeito de monólogo. Et maintenant, je fonce, Alphonse, como que a dizer, agora é sempre a abrir neste caminho de liberdade e audácia de filmar. Porque é também um monólogo, embora interior, aquele que Poicard sugere ao criar esta personagem desconcertante. Para o próprio cinema, e para a sua relação de amor-ódio com Hollywood. Michel olha para a câmara como num desafio que ultrapassa o ecrã, que inventa algo de novo, como uma espécie de improvisão em estilo jazz. Aqui não há polícias e ladrões, porque quem roubou o cinema foi Godard. Apropriou-se da memória do cinema para nos oferecer essa cumplicidade que parece fazer explodir o cinema.

É um pouco isso que acontece em O Livro de Imagem, já que vemos literalmente essas feridas no ecrã, seja pelo rebentamento cromático, pela manipulação furiosa dos tais fragmentos de filmes, fundidos com reportagens do presente. Dir-se-ia, o cinema em marcha. Ou como prefere João-Mário Grilo dizer que “este é o último filme clássico e o primeiro filme moderno”.

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