Quinta-feira, Abril 18, 2024
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Primavera Tardia: Revisitar Ozu e o cinema contido de integral pureza

Como encarar hoje a constelação de cinema de Ozu, o seu método rigoroso, repetitivo, austero e sublime? Talvez por isso faça sentido eleger Primavera Tardia, um dos seus filmes charneira, datado de 1949, apenas três anos depois da capitulação humilhante do Japão, e que agora acrescenta grandiosidade à (Re)Visitação do Cinema Japonês que a Leopardo nos tem oferecido desde Maio até Julho. Já agora celebrando o título no ciclo que nos tem permitido recordar também (ou descobrir) o cinema de Wakamatsu, aprofundar o recente Palma de Ouro Kore-eda, mas também Kitano, Kurosawa, Naruse, Oshima (cujo Contos Cruéis da Juventude, a sua primeira longa metragem) e, claro, Mizoguchi, além de vários Ozu.

Recordar Primavera Tardia é seguramente absorver as várias facetas do mesmo filme, tal como a sua composição metódica, o ambiente exterior de uma linha de comboio, a contrastar com o núcleo familiar recheado de pequenos-nadas, de conversa feita de detalhes de ocasião, nos planos milimétricos – talvez uma influência que se sinta nas composições igualmente assertivas na obra de Wes Anderson -, na posição da câmara reverencial e imóvel ao nível das personagens sentadas numa almofada à mesa das tradicionais refeições, seguramente um dos locais prediletos de Ozu e ideal para captar diálogos simples em contra-campos igualmente meticulosos. Um tal rigor e ascetismo cinematográfico só veríamos mais tarde em Bresson e Dryer, mas que assenta tão bem no exercício formal que o americano Jim Jarmusch faz no magistral e recentíssimo Paterson, e que parece evocar esta manta coerente de conceitos estéticos e ideias.

Naturalmente, relevo máximo para o seu par de atores, desde logo Chishû Ryû mas, sobretudo, Setsuko Hara, verdadeiramente luminosa e magistral. Setsuko é Noriko, a filha que vive com o pai viúvo e que não pensa casar, pois “sou feliz assim” diz com aquele sorriso amplo e olhar brilhante. Em contraponto, o pai admite mesmo (talvez de forma jocosa) voltar a casar, algo que a filha considera ser “impuro”, mesmo quando se diverte a confessá-lo ao pai e ao amigo, sempre sem perder o sorriso. Mesmo com um prometido com “ar de Gary Cooper”, de resto, um ‘noivo’ que nunca chegaremos a ver. Talvez porque não ser esse o centro da ação mas sim da hipótese de sexo apenas subentendida. Talvez por não ser desejado pela filha, ou porque ao pai já não faz sentido.

Talvez por isso, em plena época de blockbusters estridentes, apetece receber um filme como Primavera Tardiaı, talvez um dos quadros de cinema menos sensacionalistas de sempre. Talvez por elevar o modernidade do tal drama de família, justamente a seguir ao conflito de arrasou o país – mas que mostra já diversos espaços de publicidade tipicamente americanos – e onde melhor supera essa ferida aberta, acabando mesmo por depurar o seu estilo centrando-o nessa pacata vida familiar, nos pequenos gestos e rituais, como beber saké, ou nas suaves tensões entre gerações. Seguramente, uma abertura de estilo que se serve até da tradição do teatro noh para contrastar com esta representação singela, em que por exemplo, os frequentes sons monocórdicos dos diálogos de Ryo acabam acrescentar notas sublimes a este ritual de cinema difícil de superar. É também aqui que acontece aquele cinema contido mas que se revela na sua integral pureza.

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