Quinta-feira, Abril 25, 2024
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The Florida Project: uma fúria de viver a leste do paraíso

Há pirralhos à solta num bairro social disfarçado de condomínio de luxo com o nome pomposo de Castelo Encantado. As suas brincadeiras são tão inocentes como divertirem-se em concursos de cuspidelas para os vidros dos carros, despiques de arrotos, de traques com os sovacos ou insultos aos adultos à socapa. E porque o dia é longo lá vão extorquindo dinheiro aos turistas que caem nas suas mentiras, para comprar gelados, ou então a destabilizar o sistema elétrico do quadro elétrico do condomínio, para desespero do encarregado da gestão do imóvel. Que o diga Willem Dafoe que passa as passinhas neste filme, mas que acaba por ser justamente recompensado por uma nomeação ao Óscar de interpretação secundária.

O cinema de Sean Baker exprime uma certa carga onírica, talvez no sentido mais exótico do termo, quase sempre carregado de personagens a viver nas franjas da sociedade e definidas por uma liberdade para além de todos os limites. Ainda assim têm o condão de nos seduzir, mesmo quando nos mostram o lado mais indesejável da vida. Como sucede neste conto de fadas alternativo, encenado algures na Flórida, perto de Orlando, nos arredores da Disney World, junto à avenida dos Sete Anões. Sim, talvez uma variante social de Alice no País das Maravilhas.

É claro que o filme só é possível graças à presença desarmante da desafiante Moonee (numa descoberta sensacional de Brooklyn Kimberly Prince que rouba todas as cenas em que entra, e são imensas) e que a câmara de Baker segue com irresistível curiosidade. Seja nas tropelias com o amiguinho Scooty (Christopher Rivera) ou no autêntico vulcão de energia e anarquia com Halley, a mãe desnaturada e selvagem, na excelente prestação de Bria Vinaite (uma nova descoberta de Baker) que parece ter saído de Beasts of the Southern Wild. Tatuada, com brinco no lábio, cabelo azul, ela própria é uma versão do tal conto de fadas que correu mal. Porventura, o pior exemplo de educação para qualquer menor, se bem que não exista aqui qualquer tentativa de moralizar este estilo de vida, que acompanhamos num misto de espanto, incredulidade e até admiração. Ela ganha a vida a vender perfumes de contrafação num saco de plástico à porta dos resorts ou até em ocasionais serviços de prostituição. E não tem problemas em exibir um penso higiénico usado em sinal de provocação. Mas não avancemos mais para não correr o risco do spoiler.

Uma vez mais, o talento e o estilo de Sean Baker oferecer-nos um olhar condescendente e até festivo deste realismo social alucinado, nos antípodas de Ken Loach ou Mike Leigh. Por isso mesmo o tom do filme começa logo com a batida do tema enérgico Celebrate, dos Kool and the Gand, que nos introduz de imediato na realidade de Moonee e dos seus amigos, no seu mundo de exploração, um pouco como os garotos de Aniki Bóbó, de Manoel de Oliveira.

Neste parque de diversões alternativo, iremos encontramos diversas personagens insólitas, com num carrossel exótico em forma de pesadelo, como a idosa que insiste em tomar banhos de sol em topless, ou o casal de brasileiros em lua de mel chocado por se ver na eminência de pernoitar num lugar que lhes parece saído de uma favela; há também um vilão sob a forma de um idoso suspeito de pedofilia, ou os homens fardados de polícia quando são forçados a intervir pelos distúrbios causados por esta família disfuncional ou mesmo pela intervenção da comissão de proteções de menores.

Se não ficámos indiferentes à realidade de uma jovem que ganha a vida a fazer filmes eróticos (Starlet), ou à deriva de uma jovem transexual nas ruas de Los Angeles, em Tangerine, o anterior filme de Baker, totalmente rodado co iPhone, será difícil (se não mesmo impossível) ficar indiferentes à celebração da energia e liberdade de Moonee, em total desprezo pelas regras de conduta nesta franja da sociedade.

É nesse sonho sem limites, em que Moonee confessa que desejava que os garfos fossem de doce, quando se banqueteia com um brunch à pala num hotel em que fornecem um número de quarto aleatório, em que se vê o fogo de artifício ao longe, que se percebe que há mesmo outro mundo. Mas também a hipótese de um final feliz.

Florida Project é um dos grandes filmes independentes do ano que passou – isto porque acordou para o mundo no passado festival de Cannes e desde aí tem viajado por inúmeros festivais de cinema. Chega finalmente às nossas salas e merece bem ser visto. Seguramente por toda esta ousadia, mas sobretudo pela intensa liberdade de viver. Sim, uma verdadeira fúria de viver. Se bem que a leste do paraíso.

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