Sexta-feira, Março 29, 2024
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DocLisboa: para Frederick Wiseman “A biblioteca é a grande instituição democrática”

DocLisboa – Ex Libris: The New York Public Library

Paulo Portugal, em San Sebastian

 

Para ele, filmar é uma espécie de porta aberta para o desconhecido, para o conhecimento. É ele quem diz que antes deste monumental Ex Libris, tinha um contacto muito remoto com uma biblioteca, desde que estava na universidade. Mas que acreditava que conseguiria encontrar ali um filme. De facto, após as 850 horas que passou na New York Public Library temos uma ideia muito exata do que se passa naquele gigantesco universo criado para servir. É um pouco assim que Frederick Wiseman define o seu cinema, como essa partilha da vida, essa experiência institucional que acaba por assumir-se como algo mais concreto, talvez até mais palpável. Uma espécie de jogo.

Ex Libris – The New York Public Library foi premiado no passado festival de Veneza com o prémio FIPRESCI, pela crítica internacional, num júri onde de resto tivemos o privilégio de participar, e que cativou pela sua capacidade de oferecer um objeto de comunicação popular muito vasto, sobretudo em tempos em que essa diversidade, esse acesso e esse processo democrático parece estar cada vez mais posto em causa. Sim, pela administração Trump, como Wiseman não tem problema em reconhecer. Ele que reconheceu a sua ligação a Portugal, ao DocLisboa, onde se exibe este Ex Libris, à Cinemateca Portuguesa e ao amigo José Manuel Costa. Talvez venha cá para a próxima… Para nós, foi também um reencontro depois da entrevista, em 1989, durante o ciclo na Cinemateca. Wiseman que continua a fazer jus ao seu apelido, sim a minha cabeça continua a funcionar bem, como nos assegurou depois de um brilhante exercício de calculo mental.

O seu filme Ex Libris vai passar no DocLisboa. Não estará presente em Lisboa desta vez?

Infelizmente, não posso ir. Já estive várias vezes em Lisboa, mas desta vez não poderei ir, pois tenho compromissos para a estreia em França. Infelizmente, pois gostei muito das retrospetivas que já fizeram. Gostava de rever o José Manuel Costa. Se o vir, mande um abraço.

Sim, espero que venham em breve. Diga-nos, o que foi que mais o impressionou na Biblioteca de Nova Iorque?

Achei que uma biblioteca se encaixaria nesta série de documentários sobre instituições. Mas não é que soubesse muito sobre bibliotecas. Aliás, não entrava numa desde que saí da universidade. Não fazia ideia do quanto mudaram ao longo destes tempos e, sobretudo, quanto tinha mudado a biblioteca de Nova Iorque, tal como a enorme variedade de atividades que engloba, os programas, os cursos e de que forma toca a vida de tanta gente.

Podemos dizer que para além das instituições nos seus filmes o aspeto social está também sempre associado?

Sim, está também associado. Mas não tanto aquilo que sabia antecipadamente, mas o que fui aprendendo ao longo desse processo.

E o que foi que mais o afetou durante este tempo, foi essa imensa diversidade que refere?

Sim, é isso. Tal como o filme refere, aliás, essa resposta está no filme em si. Mas, na verdade, foi mesmo essa variedade de programas que mais me surpreendeu. A descrição da biblioteca é a grande instituição democrática. Desde logo, está aberta para toda a gente, independentemente da raça, classe, etnia, posição económica. Todos usam biblioteca e todos se envolvem na biblioteca. É claro que muitas pessoas abastadas apoiam e ajudam e muitas pessoas pobres de Nova Iorque usam-na de forma a obterem vantagens na sua vida.

Antes de começar o projeto tinha já essa curiosidade?

Tinham uma curiosidade de uma forma geral. Veja bem, para mim, cada um destes filmes foi uma enorme aprendizagem, isto porque de início normalmente não sei quase nada sobre esse assunto. A única expectativa que tenho antes de começar é que acredito que posso encontrar ali um tema para um filme. No fundo, cada filme é uma jogada de sorte. É como estar em Las Vegas. Mas eu não vou a Las Vegas fazer um filme. Mas cada filme é um jogo, pois nunca sei o que vou encontrar.

Acha que será essa uma das razões pelas quais se tornou num documentarista? Será que essa curiosidade e descoberta se poderá aplicar aos seus filmes mais antigos?

Eu sou um pouco aventureiro. E sou curioso. Em vez de ir à lua vou a bairros onde nunca estive. É um sentido de aventura. É divertido fazer um destes filmes porque aprendemos tantas coisas, conhecemos pessoas em situações em que normalmente não encontraríamos.

Terá sido também essa uma das razões pelas quais decidiu não seguir a sua profissão de advogado?

Eu não gostava de ser advogado. Não gostava de ir à escola, tinha uma grande dificuldade em ler aquilo que deveria ler, porque estava tão mal escrito. Eu fui estudar Direito para evitar a guerra da Coreia. Assim podia pedir adiamentos. A guerra da Coreia começou quando estava no liceu e acabou mesmo quando terminei o curso de Direito. Ainda tive de fazer serviço militar…

Mas já não ia para o ultramar.

Não eu fui, mas já não para um cenário de guerra. É algo muito diferente.

Do que se lembra desse período?

Lembro-me que era uma enorme perda de tempo. No entanto, não foi do ponto de vista pessoa, porque conheci pessoas com experiências totalmente diferentes da minha. Eu tinha sobretudo uma educação de classe média em Boston e nãoconhecia muita gente. Foi no exército que isso se modificou. Nesse sentido, aprendo muito sobre as pessoas, não tanto sobre o exército.

De resto inspirou-o para fazer alguns documentários também…

Sim, fiz três documentários sobre o serviço militar. O Basic Training (1971), Manobras (1980) e Missile (1988). Eu fiz o basic training (recruta), em 1955, e revisitei esse momento ao fazer o filme quinze anos depois.

Quando começa um destes projetos há algo que pretenda captar com a sua câmara?

O que eu espero captar é o quotidiano desse lugar. Mas isso é muito abstrato. Quando pensei que uma biblioteca poderia ser um bom tema para um filme, já sabia que as pessoas levavam livros. Mas não sabia muito mais do que isso quando comecei. Nesse sentido, o que aprendi é o que se vê no filme. Há livros, há reuniões, há áudio livros, música, não sabemos o que se irá passar a seguir.

Nunca se sabe quando vamos encontrar o Elvis Costello ou a Patti Smith a cantar, não é? (risos)

Ou alguém a ler Nabokov para fazer uma gravação para invisuais.

Imagino que muita gente não saiba dessa diversidade.

Acho que tem razão. Eu não sabia nada disso antes de começar. É nesse sentido que acho que é uma ótima instituição democrática. E uma das coisas mais importantes é que as pessoas que a gerem interessam-se pelo que lá de faz. Aceitam essa responsabilidade e, genuinamente, querem ajudar as outras pessoas.

Acha que nesta era de Trump este Ex Libris se arrisca a ser também um filme político?

Eu não quis fazer um filme político, mas talvez seja como diz, porque Trump representa tudo aquilo que é oposto à biblioteca. Os valores da biblioteca são os valores que o Trump quer destruir. A democracia, a confiança, o conhecimento, a diversidade, etc…

Não deixa de ser algo paradoxal como num suposto processo democrático, não sabe tudo, acabou por ser eleito esta figura incrível?

Sim, podemos dizer que a educação americana falhou. Mas temos de nos lembrar que o Trump não ganhou a maioria dos votos. A Hillary Clinton teve mais 3,5 milhões de votos que o Trump. Só pelo colégio eleitoral é que o Trump é eleito. Nesse sentido, é um Presidente de uma minoria. Tal como foi Bush. O Al Gore teve mais votos que o Bush.

É o sistema político que não funciona?

Claro. Isto é uma república e não uma democracia direta. Podemos dizer que o Trump representa o pior da vida americana e a biblioteca representa o melhor. O Trump tentará destruir muitas coisas, mas muitos tribunais impedem-no de conseguir algumas coisas que ele pretende. A América ainda não se transformou num regime fascista. Por exemplo, a forma como se dirige à Coreia do Norte é como se estivesse num reality show. É ignorante, porque nem sequer deve ler os relatórios do seu staff. Não deve ler nada.

Lê o seus tweets de certeza…

Lê os seus tweets e tem a sua informação da FOX News.

Quantas horas passou na biblioteca e quantas horas de filme captou?

Eu estive lá durante três meses, portanto são aproximadamente 90 dias. Desses 90 dias estive lá uns 85 e desses dias estive lá um mínimo de 10 horas por dia. Portanto estive lá 850 horas. E dessas 850 horas tenho 850 horas de filme. Dessas 850 horas usei 3h17, portanto há uma média tempo usado e filme usado de 170/1.

Então, para além de documentarista é também matemático, certo?

Felizmente, a minha cabeça ainda funciona bem.

Quando olha para trás, desde Titucut Folies até Ex Libris, há algo que possa definir o seu trabalho?

É um esforço de mostrar os mais variados aspetos da vida contemporânea dos americanos. Pode ser uma declaração muito geral, mas acho que é isso que faço. Isto através de instituições. O que eu espero que façam os meus filmes é impor uma forma na experiência. Porque a experiência não tem forma. Ao tentar criar uma estrutura narrativa estou a impor uma forma na minha própria experiência.

 

 

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