Terça-feira, Abril 23, 2024
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Além de Twin Peaks: Momentos David Lynch

Não é novidade que Twin Peaks, série criada em conjunto em conjunto por David Lynch e Mark Frost, é um sucesso absoluto dos anos 90 na dramaturgia – o que, ao longo do tempo, tornou-se um marco, uma consequência da repercussão do grande mistério sobre o assassinato de Laura Palmer.

No entanto, para além da famosa Twin Peaks, há outras obras do realizador David Lynch que também merecem a nossa apreciação. Muito mais do que o mistério de Laura Palmer, Lynch também deixou a sua marca no surrealismo cinematográfico, através de ferramentas simples, mas intrigantes ao contar histórias.

Portanto, Lynch é maior e mais do que Twin Peaks, e este artigo se propõe a dar-lhe conhecer outros melhores momentos do realizador para além da série.

No Céu Tudo é Perfeito

Para começar, é justo fazê-lo pelo começo. Em 1977, Lynch lançou o seu primeiro filme, Eraserhead – No Céu Tudo é Perfeito, que conta a história de Henry, que ao descobrir que vai ser pai, precisa tomar as decisões certas para lidar com a novidade. Nalguns casos, o primeiro filme de um realizador não é muito bom, e geralmente apresenta pouco do seu potencial aos espectadores.

Este não é o caso de Lynch. No Céu Tudo é Perfeito pode ser considerado ruim em as aspetos técnicos – noutras palavras fotografia e argumento -, e há quem não consiga assisti-lo até o fim. Entretanto, é importante perceber que Lynch é um realizador surrealista, que utiliza elementos nada convenientes ou muito profissionais para transmitir a mensagem pretendida.

Neste filme, a fotografia, a princípio ruim, diz muito sobre o filme. O cenário externo causa-nos a sensação de desordem e de caos, causado pelo plano de fundo industrial. Já o cenário interno, como por exemplo, o apartamento de Henry, causa-nos sufoco, desconforto e apreensão, devido ao tamanho pequeno das divisões. A princípio, isto é mesmo ruim, pois além de ser visualmente e tecnicamente feio, é desconfortante de se assistir. No entanto, é justamente desconforto, sufoco e apreensão que David Lynch quis passar ao espectador com o filme, pois é um género surrealista. E o surrealismo é um estilo de arte que abdica daquilo que é técnico e regrado, ou visualmente bonito e harmoioso, para priorizar os sentimentos do público ao deparar-se com a obra de arte.

Estrada Perdida

Estrada Perdida desafia os supostos limites do surrealismo, o que faz muita gente se perguntar onde é que a arte termina, e onde é que a falta de sensatez, ao produzir um filme, começa. Os limites entre a arte e o falhanço estão borrados, entretanto não se trata sobre o visual do filme. Trata-se de um argumento com estranhas conexões, que desafia as leis da lógica argumentativa, e dos princípios básicos de escrita – noutras palavras, a famosa Jornada do Herói, de Joseph Campbell.

A princípio, o enredo concentra-se em Fred, que é preso por matar a esposa, mas não se lembra de cometer o crime. Entretanto, na metade do filme, Fred é esquecido, e o filme foca em Peter, um personagem totalmente diferente e, aparentemente sem nenhuma ligação com Fred. A partir daí, as duas histórias desenrolam-se paralelamente, deixando o espectador confuso com a pretensão de Lynch ao escolher uma forma tão estranha de contar histórias. É facto que há pequenas ligações entre as duas realidades do filme, alguns elementos que aparecem numa, repetem-se noutra. Entretanto, isto não é suficiente para que forme qualquer significado lógico.

Mais uma vez, a lógica fica por conta do público, sujeitando o filme, aparentemente sem objectivo nenhum, a várias interpretações. Esta é justamente uma qualidade de Lynch. Um filme diferente para cada espectador. E mesmo que, a príncipio, não faça sentido, é intrigante, e força-nos a procurar uma razão por Lynch produzir aquilo. É algo que nós sabemos que é ilógico só porque ainda não encontrámos uma interpretação mais aceitável. No fundo, há lógica, e é nesta procura por ela que Lynch faz-se um grande realizador – que parece estar acima de todos nós.

Um Coração Selvagem

Por último, mas não menos importante, há Um Coração Selvagem, que é visualmente e literariamente mais aceitável pelo público. Ou seja, é absorvido pelo espectador de forma menos confusa e mais confortável. O filme conta o romance proibido, pelos pais da rapariga, de Sailor e Lula. Sailor, em seu visual Elvis Presley, é o típico bad boy que se apaixona pela rapariga doce, mas sensual, que o faz ser mais amoroso e sentimental. E, justamente pelas acções pouco morais de Sailor, os pais de Lula desaprovam o namoro, motivo da separação do casal.

Para quem gosta de um filme simples, e que faça o menor dos sentidos, esta é obra perfeita de David Lynch. Entretanto, não quer dizer que o realizador não deixou a sua marca surrealista. Sem sutilezas, Lynch usa e abusa dos artifícios visuais para fazer o espectador sentir o ardor e a emoção da paixão de Sailor e Lula.

O visual é quente que explora muito do fogo, na cena do incêndio – desde a intensidade até os cigarros. O que pretende-se fazer é aproximar o público do filme, de forma menos confusa e mais visual. Mas o surrealismo de Lynch n’Um Coração Selvagem não pára por aí. O filme ainda traz referências com O Mágico de Oz, como comparações da Bruxa Má do Oeste e da Dorothy, analogias aos sapatos vermelhos, a bola de cristal e a famosa estrada de tijolos amarelos. O que parece cair-lhe bem, pois ambas as histórias têm semelhanças. Ambas têm um visual e um enredo aparentemente aceitável, mas carregam significados e interpretações pesadas.

 

David Lynch é um realizador que, por vezes, dificilmente é compreendido. Muitos dos seus filmes dividem opiniões na crítica. Esta é a sua maior qualidade. É preciso ir além do se vê no ecrã para perceber o seu objectivo. A reflexão após os seus filmes faz-se necessária, e mesmo que seja para o mal, sem dúvida nenhuma ainda é marcante.

 

 

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