Quinta-feira, Abril 25, 2024
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Hitchcock/Truffaut: uma lição de cinema

 

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O histórico encontro de Truffaut com Hitchcock, em 1962, captado sob a forma de uma entrevista ao longo de uma semana, fazia parte de um plano preciso do cineasta e crítico francês em confirmar o mestre britânico no Olimpo dos realizadores. O resultado acabaria por originar um livro com essa conversa e cuja versão final, editada em 1983, constituir-se-ia numa espécie de bíblia para realizadores e, muito provavelmente, num dos melhores livros sobre cinema. Infelizmente, Hitchcock já não o leria, pois deixava-nos em 1980, e o próprio Truffaut desapareceria também com um cancro no cérebro um ano depois da sua edição, aos 52 anos. Ao nosso país Hitchcock diálogo com Truffaut chegaria quatro anos mais tarde, e a nossa casa em 1991, conforme a assinatura e data inscritas. Não como um amontoado de folhas, na edição de Wes Anderson, à força de tanto o usar como “manual de realizador”, como explica no filme, ainda assim com os marcadores da época em partes essenciais. Foi talvez nessa vontade de rever “a matéria dada” que voltamos a ver o filme na antestreia realizada na Cinemateca Portuguesa, depois de termos assistir à estreia mundial no festival de Cannes, na presença do realizador Kent Jones, que escreveu o filme em parceria com o crítico Serge Toubiana, dos Cahiers.

Há, efetivamente, neste Hitchcock/Truffaut uma irresistível dimensão de estudo  que supera algum adorno, talvez desnecessário, das variadíssimas talking heads que pontuam todo o filme. Ainda que se compreenda esse suporte que ajuda a atualizar e partilhar por diversas gerações esta suculenta lição de cinema facilitada pelo valiosíssimo suporte áudio das entrevistas e o tal comentário de cineastas influenciados, como David Fincher, Martin Scorsese, Paul Schrader, James Gray, Olivier Assayas, o já citado Wes Anderson, Arnaud Desplechin, Peter Bogdanovich, Richard Linklater ou Kiyoshi Kurosawa, num registo narrado por Mathieu Almaric.

Estamos então no início dos anos 60, num período em que Hitch trabalhava na montagem de Os Pássaros. Para trás, o britânico deixara já o período áureo das produções de Selznick, que o levariam de Londres para lançar toda a sua criatividade com a dinâmica do modo de produção de Hollywood, bem como o sucesso retumbante de Psico, em 1960, até ao momento em que perdera algum impacto no box-office, durante os anos 50, após algum desgaste provocado pela experiência televisiva com Hitchcock Presents, com um Hitchcock já caricaturado e reduzido a um esboço ou silhueta.

Paradoxalmente, Truffaut era já na altura deste encontro um enfant terrible de 30 anos, que ganhava estatuto com a preparação de Jules e Jim, o seu terceiro filme, e se afirmava com um dos realizadores vitais da Nouvelle Vague. Por isso mesmo se falou de cinema das nove às seis, mesmo durante os intervalos para o almoço, conforme explica o cineasta na metodologia nas memórias dessas entrevistas que foram preparadas com o mesmo cuidado como se se tratasse de um verdadeiro filme. Foi também talvez essa vertente, de uma lição de cinema, que o atual diretor de programação do New York Film Festival quis captar neste documentário. Um trabalho largamente conseguido, reforçado então por esta plateia de notáveis. Mesmo perdendo parte da sua concisão, pelo menos no que se refere à metodologia das entrevistas, filme a filme. Pode ser, se bem que dificilmente essa jornada caberia em algo menor que o formato de uma série de televisão e não um mero filme documental.

Seja como for, Hitchcock/Truffaut tem sempre aquele peso especial para o público mais cinéfilo ou interessado pela História do Cinema, pois permite-nos rever (sempre!) e recordar todo aquele rigor de mise en scène e linguagem cinematográfica, em tantas sequências da sua obra, e, muito provavelmente, concordar com Truffaut, encarando Hitchcock, se não o melhor, um dos melhores cineastas de sempre.

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